quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

CALEIDOSCÓPIO


Numa volta ao passado, lembro bem como escolhemos a nova casa, após três filhos já crescidos e ocupando todos os espaços de um apartamento na Praia do Canto que, durante 19 anos foi frequentado por adolescentes e adultos amigos dos meus filhos. Tempo bom: ruas tranquilas, trânsito com poucos semáforos e um ambiente em que todos se conheciam. Assim se vivia numa cidade ainda pacata, mas com louros da Vitória e abençoada pelo Espírito Santo.

Mudamos então para Jardim Camburi, bairro mais populoso de Vitória que estava se formatando com ruas ainda descalças, poucos prédios, comércio tímido e vizinhança desconhecida. Mas não nos importamos com isso, estávamos entusiasmados pelo novo.

A casa, em estilo nobre, tinha janelas coloniais, cujas vidraças se mostravam como caleidoscópio com imagens de combinações variadas e agradáveis efeitos visuais. Os seus novos moradores foram descobrindo, aos poucos, o conforto e o lazer que a casa oferecia e também o trabalho com a limpeza, para que se mostrasse límpida como os pequenos fragmentos de cristais coloridos.

Os finais de semana eram sempre alegrados com churrascos e banhos de piscina e todos eram muito bem-vindos. A dimensão do acolhimento era proporcional ou maior que o tamanho da casa. Os anos foram passando, os filhos casando e os netos chegando para preencher a nossa vida e o nosso coração. Chegaram de mansinho nos espaços que os esperava.

 Foram muitas as brincadeiras e as quedas da rede a qual era disputada por todos, embora tivesse algumas regras que eram sempre quebradas, como: um de cada vez; contar até dez; balançar do menor para o maior. O banho no tanque era sempre mais surpreendente que navegar no jacaré da piscina, pois lavavam seus biquínis e sungas sem economia de água e sabão.

Os anos foram passando e a casa acolhendo crianças que catavam folhas no jardim e quebravam, “sem querer”, as lindas e
exóticas orquídeas com a bola que, quase sempre, ia parar no quintal do vizinho. Geralmente elas se rasgavam nos cacos de vidros sobre o muro e, como avó, prevenida, tinha um estoque em casa para que  fossem substituídas a cada chute impensado.

Na hora de irem embora era sempre uma disputa dos candidatos a dormir com a avó, que se dispunha a contar histórias mais velhas do que novas, mas todas ouvidas atentamente e corrigidas num deslize de memória.

Às vezes, no meio dessa contação e já quase adormecida com a própria narrativa, a avó já estava emendando uma história com outra, num misto de “O jacarezinho egoísta” e “João e o pé de feijão”, que trocavam de cenários e coloridos como os mutantes caleidoscópios. Com o repertório ultrapassado e repetitivo, começava a criar histórias pouco atrativas, mesmo assim os seus ouvintes ficavam atentos com os personagens novos, que muitas vezes eram eles próprios. Quando descobriam essa manobra não ficavam muito satisfeitos, mas como estes eram sempre elogiados: educados e estudiosos, todos de forma rápida se incorporavam a eles. No encontro posterior pediam que recontasse a “nova” história que já nem era mais lembrada.

Também líamos e repetíamos orações infantis que não só serviam para a formação religiosa como também acalmavam os ânimos e dividíamos parte da responsabilidade com os anjos da guarda, sempre atentos. E assim o tempo passava, as crianças cresciam e nós envelhecíamos na mesma proporção, porque o tempo não para.

O Dia de Natal, sempre esperado, juntava família e amigos que também tinham crianças – era uma festa! Na época dos famosos patinetes, apesar de limitar espaço para essa prática, não havia quem segurasse a gurizada. Ainda bem que toda criança tem um anjo a bordo ou na garupa, que os protege. Destarte, Papai Noel se recolhia feliz e satisfeito mais uma vez com o dever cumprido.

E assim passou o tempo: as crianças cresceram e se transformaram em adolescentes menos chatos que a maioria que se conhece e, como pássaros, bateram as primeiras asinhas rumo ao intercâmbio. Após essa experiência, prosseguiram os estudos e vieram as paqueras e os namoros.

Atualmente, com essa turminha crescida, chegou outra em substituição e a avó retomava as mesmas histórias e orações, intermediada com as intervenções dos netos mais velhos. Mas, com o avanço da tecnologia, o acesso à internet e aos games, as velhas histórias estão sendo substituídas por outros personagens, numa inovação ímpar que se desdobra a cada momento – é como se estivéssemos, de forma curiosa movimentando pequeninos cristais brilhantes e coloridos.

Hoje o espaço é outro – a casa foi vendida e está apenas no imaginário daqueles que partilharam dela. Mas o acolhimento é o mesmo com os tradicionais almoços no Dia das Mães, dos Pais e Natal. Com a modernidade e o modismo é preciso diversificar o cardápio: carnívoros, alérgicos, meio-vegetarianos, veganos, exigentes e os chatos. Mas a alegria é a mesma e, com os namoricos dos netos mais velhos a família continua aumentando e se ajeitando na mesa – agora pequena, formando mosaicos coloridos e cristalinos como nos caleidoscópios de outrora.


POBRE OFERENDA

                           
Deny Gomes


Queria te dar, menino,
o meu amor mais bonito,
o meu jeito mais maneiro
de aparecer na esquina
e sorrir para você.

Queria te dar, moreno,
a minha voz, minhas mãos,
aquele brilho em meus olhos,
minha gana de viver,
me consumir de paixão. 

Queria te dar, cigano,este feitiço, a magia
do meu bem-querer sem freios,
os meus cavalos de sonho
cobertos de pura prata.

Queria te dar, corsário,
o meu sangue, meus segredos
na palma da minha mão
e meu navio encantado
com tesouros no porão.

Olha, eu queria te dar
o meu perfume almíscar,
meu gosto de maresia,
para bulir com teus sentidos,
te fazer desatinar.

Eu queria te entregar
as cicatrizes profundas
que a vida riscou em mim
e pedir que me curasses
deste desespero mudo
de só te dar estes versos,
de não pode te dar tudo.



Poema no livro “O desejo aprisionado” –
2ª edição SECULT 2015