sábado, 8 de junho de 2013

UM "KEFFIYEH" PARA NINAWÁ KUIN

Amyra El Khalili é economista,
 professora e conferencista.  

 “ Fere a cabeça da víbora com o punho de seu inimigo. Disto necessariamente te resultará num bem: se o inimigo vencer a víbora morrerá. Se a víbora vencer, terás um inimigo a menos!” Provérbio beduíno

Deixei uma parte de mim no estado do Acre quando coloquei sobre o ombro do grande líder indígena Ninawá Huni Kuin um Keffiyeh (lenço beduíno) durante a conferência que proferi à convite do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) na Universidade Federal do Acre.

Símbolo da luta contra a ocupação dos territórios palestinos, o Keffiyeh tornou-se indumentária de ativistas solidários à causa palestina em todo o mundo. Para o povo palestino, o Keffiyeh representa o começo e o fim. O tudo e o nada. É manifesto aberto dos que não aceitam a infame paz dos túmulos.

Nossos mártires são velados e enterrados envoltos no Keffiyeh. O Keffiyeh para Ninawá Huni Kuin foi presente da Fearab-Brasil (Federação da Entidades Árabes Brasileiras) dado por intermédio do Dr. Eduardo Felício Elias, e da FEPAL (Federação das Entidades Palestino-Brasileiras), pelas mãos de Emir Mourad, com o apoio do Dr. Alem Garcia, Presidente da Fearab Uruguai (Federação das Entidades Árabes Uruguaias), entregue por esta beduína palestino-brasileira em agradecimento pela solidariedade dos Povos Indígenas no VI Fórum Social Pan-Amazônico 2012 (Cobija, Bolívia) (1) e Fórum Social Mundial 2013 (Túnis, Tunísia) (2) (3), além de tantas outras manifestações em apoio a nossa justa causa.

Nesta ocasião, presenteamos também com o Keffiyeh os companheiros Lindomar Padilha e o Prof. Elder Andrade de Paula por estarem à frente do bom combate e registramos nosso respeito e admiração pela trajetória de Dercy Teles de Carvalho, primeira mulher a assumir a presidência de um Sindicato de Trabalhadores Rurais no Estado do Acre e uma das primeiras também no Brasil.

NAKBA indígena

Expulsos de seus territórios e massacrados há 513 anos neste continente, os indígenas são o exemplo da resistência e da sabedoria nos cuidados com o ambiente e, mesmo espoliados de suas terras, ainda encontram forças para se solidarizarem com o povo palestino, vítimas da Nakba (tragédia da ocupação) há 65 anos.

Na conferência proferida, contei como funciona na prática a engrenagem da “financeirização da natureza e espoliação dos territórios indígenas e camponeses na Amazônia".

Falei da origem do mercado de carbono desde o seu real motivador militar, o “Conselho da Bolha”, na década de 60. Analisei a formação do comércio de emissões a partir da década de 70 (4), posteriormente na Eco92, o Protocolo de Kyoto (1997), e segui traçando paralelo sobre quanto custam as guerras para os povos do Oriente Médio e as “semelhanças” entre o que ocorre lá com o que vem ocorrendo cá.

Falei do que representa a territorialidade, da relação da água como um ente vivo para os povos do deserto e de sua importância para a sobrevivência de todos seres do planeta, seja pelo aspecto espiritual quanto pelo valor econômico; da fundamental importância para quem quiser compreender a luta entre conceitos ligados ao neoliberalismo e às forças populares emancipatórias, sobretudo na Amazônia, região em que os gatos são pardos.

Atravessamos o deserto cantando e dançando em caravana beduíno-indígena e chegamos nas florestas tropicais contando “causos” enquanto perdidos ficam vagando na superfície sem chegar a lugar nenhum ao defenderem como solução para a crise ambiental as tais geringonças financeiras como o REDD, REDD+, PSA , RCEs, PSE, MDL, Créditos de Compensação, Créditos de Carbono, Créditos de Efluentes, etcetera, etcetera e etcetera... (5)

Há tempos, venho alertando que isso tudo é uma coisa só. Porém, os que pretendem confundir querem nos fazer crer que cada uma destas siglas são coisas diferentes e, desta forma, tentam justificar o injustificável, ou seja, que o mercado financeiro resolve tudo pelas vias do próprio mercado. O mercado financeiro se autorregula e será capaz de combater com eficiência os males que afetam o ambiente.

Se querem provocar convulsões sociais com suas doutrinas neoliberais para implantar o neocolonialismo do carbono como “experimento” (experiências aprendidas?) usando os povos das florestas como cobaias, temos que parabenizá-los, pois, neste intento, estão alcançando com sucesso seus objetivos. Estamos testemunhando violentos conflitos no seio das florestas e nos campos ao levantarmos vozes contra a usurpação de terras, rapinagem dos bens comuns e desrespeito aos direitos humanos viabilizados por reformas legislativas como tem denunciado o CIMI (6) (7).

O que acontece no Oriente Médio, para incautos, nunca acontecerá neste lado do Sul Global. E os palestinos, somos os terroristas, radicais e fundamentalistas por estarmos deste lado de cá, alertando para mais um assalto de atores que conhecemos muito bem, os responsáveis com “nome e sobrenome” deste crime lesa-humanidade, de que essa estratégia contra as nações indígenas e demais povos das florestas é aquela idêntica que tem exterminado milhares e milhares de palestinos, iraquianos, afegãos, libaneses, sírios, africanos entre outros “parentes”. Diz o provérbio beduíno: “No deserto a verdade é a melhor camuflagem, porque ninguém acredita nela!”

Foi neste “Abril Indígena 2013”, em ritual de pajelança e intifada indígena** que o guerreiro Ninawá Huni Kuin, sua família, seu povo, companheiros e parentes (os do lado de cá) receberam a proteção espiritual (Keffiyeh) do povo beduíno (os do lado de lá) sob a mira atenta do mundo, assim como foi a trajetória - o começo e o fim - daquele que tombou em defesa da Amazônia, o mártir palestino Chico Mendes.

Não iremos embora
                             Tawfic Zayyad

Aqui
Sobre vossos peitos
Persistimos
Como uma muralha
Em vossas goelas
Como cacos de vidro
Imperturbáveis
E em vossos olhos
Como uma tempestade de fogo
Aqui
Sobre vossos peitos
Persistimos
Como uma muralha
Em lavar os pratos em vossas casas
Em encher os copos dos senhores
Em esfregar os ladrilhos das cozinhas pretas
Para arrancar
A comida de nossos filhos
De vossas presas azuis
Aqui sobre vossos peitos
Persistimos
Como uma muralha
Famintos
Nus
Provocadores
Declamando poemas
Somos os guardiões da sombra
Das laranjeiras e das oliveiras
Semeamos as ideias como o fermento na massa
Nossos nervos são de gelo
Mas nossos corações vomitam fogo
Quando tivermos sede
Espremeremos as pedras
E comeremos terra
Quando estivermos famintos
Mas não iremos embora
E não seremos avarentos com nosso sangue
Aqui
Temos um passado
E um presente
Aqui
Está nosso futuro

Notas:

Conferência proferida no dia 12 de abril, às 19 horas, no Anfiteatro Garibaldi Brasil, da Universidade Federal do Acre, na agenda “ Abril Indígena 2013” organizado pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI), Federação do Povo Huni Kuin do Acre (FEPHAC), Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xapuri (STTR- Xapuri), Conselho de Missão entre Índios (COMIN) e o Núcleo de Pesquisa Estado, Sociedade e Desenvolvimento na Amazônia Ocidental da Universidade Federal do Acre (NUPESDAO/UFAC), com a participação dos debatedores Ninawá Huni Kuin ( Presidente da FEPHAC ), Dercy Teles de Carvalho (Presidente do STTR Xapuri), Lindomar Padilha ( CIMI) e Prof. Elder Andrade de Paula (CFCH/UFAC).

Keffiyeh é o nome dado ao pano usado na cabeça pelos homens no Médio Oriente, tipicamente branco e preto pelos beduínos, branco e vermelho pelos habitantes da Jordânia (geralmente possui cordões de algodão) e da Arábia Saudita, e branco imaculado pelos homens das cidades. O keffiyeh, também grafado kaffiyah, keffiya, kaffiya ou ainda kufiya, é associado ao movimento nacionalista palestiniano desde a Revolta Árabe (1916-1918) até mais recentemente, devido à sua adoção pelo ex-líder palestiniano Yasser Arafat http://pt.wikipedia.org/wiki/Keffiyeh

Intifada é um termo que pode ser traduzido como "revolta" . É freqüentemente empregado para designar uma insurreição contra um regime opressor ou um inimigo estrangeiro, mas tem sido especialmente utilizado para designar dois fortes movimentos da população civil da palestina contra a presença israelense nos territórios ocupados e em certas áreas teoricamente devolvidas à Autoridade Palestina (Faixa de Gaza e Cisjordânia). http://pt.wikipedia.org/wiki/Intifada
Tawfic Zayyad, palestino de Nazaré, é considerado um pioneiro da poesia de resistência. A maior parte de sua obra foi escrita na prisão.

 

Amyra El Khalili é autora do e-book "Commodities Ambientais em Missão de Paz: Novo Modelo Econômico para a América Latina e o Caribe". São Paulo: Nova Consciência, 2009. 271 p. Acesse gratuitamente www.amyra.lachatre.org.br