Sou contra botar fogo no boneco da filósofa gay. Sou contra dar nota
zero a redações Enem
RUTH DE AQUINO
Atualizado 10/11/2017 20h21
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Spi fã de Ruth de Aquimo; /Leia o que escrbru há´um ano. |
Um jovem pisoteava os dois bonecos.
Usava um boné virado para trás e um agasalho da Gap. Ria, filmava com o celular
os bruxos no chão com as tripas para fora. Uma petição on-line com 350 mil
assinaturas e deputados da bancada evangélica pressionaram o Sesc a cancelar o
seminário da filósofa, Os fins da democracia. Uma senhora de
batom rosa, óculos rosa e laçarote rosa na cabeça exibia cartaz com desenhos de
menino brincando de boneca e menina brincando de trenzinho: “Sonho de Judith
Butler é destruir a identidade sexual dos seus filhos”.
Judith Butler era, até a semana
passada, uma total desconhecida do pessoal que se reuniu em frente ao Sesc
Pompeia. A maioria absoluta dos brasileiros nunca ouviu falar da
acadêmica. É professora da Universidade da Califórnia. Nos Estados
Unidos, é considerada uma das filósofas mais importantes. Em 1990, publicou um
livro, Problemas de gênero – Feminismo e subversão da identidade. É
casada com uma mulher. Dentro do Sesc, Judith se mostrava surpresa com a reação
indignada, mas minimizava: “Deve haver muitos robôs por trás disso”.
O problema é que os robôs estão ganhando vida e se assanhando de
tal maneira que, em vez de simplesmente se expressar, transformam seus
argumentos em ódio e linchamento. É nítida a onda conservadora. Contra gays.
Contra o direito ao aborto. A favor de uma população armada. Os manifestantes
gritavam “I love you, Trump”. Entoavam slogans pró-Bolsonaro. Skinheads
gritavam palavras de ordem nacionalistas. Muitos pediam buzinaço a favor do
casamento “como Deus o fez”, entre um homem e uma mulher. O protesto era
“contra a depravação de nossa cultura”.
Todas essas pessoas têm o direito de se manifestar, mas não de
tentar censurar uma palestra, bloquear aulas de história ou fechar uma
exposição artística, simplesmente por achar que “atentam contra a família” e as
nossas criancinhas. A mensagem transmitida pela caça às bruxas dá arrepios de
medo. Daqui a pouco, não poderemos mais pensar, dependendo de quem for eleito
presidente. Patrulhas e populismos de direita e de esquerda me apavoram. A
militância cega torna o mundo mais burro e mais perigoso.
Seguindo o mesmo raciocínio, sou contra dar nota zero a redações
do Enem que “desrespeitem os direitos humanos”. Coloco entre aspas porque esse
julgamento é subjetivo. Nessa questão, estou com a ministra Cármen Lúcia,
presidente do Supremo Tribunal Federal. Como dar a uma junta de professores o
poder de anular redações que eles considerem ofensivas a direitos humanos? É
possível, sim, dar nota zero a uma péssima redação. Mas não sem ao menos
considerar sua qualidade de argumentação. Entraríamos aí no terreno do
obscurantismo, da patrulha política ou religiosa. Do fanatismo. Da censura.
Sou contra multar Bolsonaro em R$ 150 mil por ter dito que seus
filhos tiveram uma “boa educação”, com um pai presente e, por isso, ele “não
corre o risco” de ter um filho gay. Bolsonaro
é homofóbico. Bolsonaro é a favor de tortura. Bolsonaro é um militarista, a
favor de porte de armas para todo cidadão. Bolsonaro é um perigo concreto de
totalitarismo no Brasil, com sua candidatura à Presidência. Não deveria ser
transformado em vítima por dizer o que acha. Os correligionários do deputado
federal do PSC se consideram imbuídos de uma cruzada pela justiça, tradição,
família, moral e bons costumes. Quando vemos que o ódio, o preconceito e a
censura vêm muito do povo, de gente comum, podemos imaginar o apelo da fala de
Bolsonaro. Deveríamos combatê-lo com a sensatez.
O bom exemplo da semana é que o Museu de Arte de São Paulo
(Masp) decidiu que a exposição Histórias
da sexualidade deixou de ser proibida para menores de 18 anos.
Agora, a mostra passa a ter apenas a classificação indicativa, não proibitiva.
Menores de idade poderão ir à exposição do Masp se acompanhados por seus
responsáveis. Esse recuo do museu é respaldado por procuradores dos direitos do
cidadão, que disseram: “Não cabe ao Estado impedir o acesso de crianças ou
adolescentes a eventos tidos como ‘inadequados’ a sua faixa etária”.
No momento em que o Estado decidir tudo por nós, como pensamos,
o que ouvimos, o que vemos, o que nossos filhos podem ou devem ver, ler, ouvir,
será o fim da democracia e o começo da ditadura