sábado, 14 de janeiro de 2017

NA ESCURIDÃO DAS NOITES CLARAS



DAGUITO RODRIGUES de São Paulo

Concorrente do Concurso Literário Elza Cunha Excelente texto.

Zunduri não quer morrer. Não mais. A garota orou aos deuses, lua após lua, agora implora que esqueçam cada súplica. A morte já não é uma vontade. Nem uma opção. A vida que carrega abriu novos caminhos para um futuro que permanece negro para Zunduri, mas que se revela iluminado para o filho que ainda repousa no ventre. Precisa encontrar forças para resistir a cada raiar da manhã, para superar o trabalho duro na lavoura, o couro do chicote nas costas feridas e a vergonha da nudez diante de desconhecidos. Abuso atrás de abuso, uma rotina que minou a vontade de acordar naqueles últimos anos. Se pudesse, teria há muito desistido de respirar. Agora, é grata que isso seja impossível. Quer não só manter o ar nos próprios pulmões como também nos da criança que ainda não desgarrou de seu corpo. Um ar seco e com cheiro de pó.

Zunduri é assim chamada entre os dela. Na presença dos outros, é Isabel. Escolha irônica dos brancos. Avo, o mais culto entre os seus, disse que Isabel quer dizer “casta”. Zunduri não entendeu. Pura, casta é pura, garota. Há muito já não era. Ela sempre achou estranho os significados das palavras, mas sabe que cada nome, cada um deles, tem um significado. Pode procurar.

Sonolenta, Zunduri acomoda as costas cortadas na palha seca e nota o olhar da velha, a senhora que deita ao lado dela. Ele vai nascer livre, tosse Ashia entre pigarros. A garota segue de barriga para cima por um tempo, sabe da vitória que a nova lei entregou a seu filho, como também entende, para ela não há mais saída. Está destinada àquela fazenda até a morte. Mas livre de quê? Do chicote? Vai nascer aqui, comer aqui, deitar aqui, trabalhar aqui e morrer aqui, angustia Zunduri. A senhora limpa os beiços e engole a liberdade. A negrinha está tão certa quanto a vida que carrega na barriga. Mas antes o direito de não ser propriedade do que a convicção da eternidade no cabresto.

Lua cheia. O prato de porcelanato branco que serve a mesa na casa grande pende na tela preta chamuscada pelos deuses. Zunduri prefere as noites escuras. Quando as sombras encobrem rostos e corpos de homens que não conhece. Identidades ocultas pelo preto e pela palha revolta do casebre onde é obrigada a atender. Não tivesse cultivado o desenho encurvado que tanto atrai os homens poderia não ter esta obrigação na fazenda. Tocar lábios, peles,

peitos, pernas e tanto mais de senhores que ela jamais escolheria se tivesse querer. Em noites claras como esta, via o que depois procurava esquecer. Vozes e gemidos ganhavam rostos. Peles ganhavam tons. Olhos ganhavam vida. Temia os atendimentos em noites iluminadas. Mas já há muito, desde o crescimento visual da barriga e a mudança do corpo, a garota era poupada do trabalho noturno. Estava se acostumando a uma vida que não era a dela. Sabia que após a vinda de Kito tudo voltaria ao normal. E foi esta normalidade que motivou Zunduri a ter orado tanto pela própria morte.

Estranho foi ver Menezes ali na porta. O chapéu encobriu a Lua e trouxe a escuridão menos sofrida. Quer o quê aquele homem nesta noite? Ashia ronca ao lado da negrinha. Como se. Zunduri não teve tempo de fingir também. Os olhos dela encontraram os de Menezes assim que ele surgiu debaixo do batente. Venha, venha agora.

Zunduri levanta e limpa a palha seca que colou nas feridas. Ajeita o trapo que tenta escapar da barriga. Hoje não, Menezes. Quieta, venha que hoje sim. E os dois partem sem que ele precise indicar o caminho. Pela terra pisada das trilhas da propriedade. Não há luzes na casa grande. As velas se calaram na fazenda. O cliente não bebeu e não riu antes dos trabalhos. Estranho. É na cachaça e nas piadas que o pagamento é sempre feito. Zunduri já se acostumou.

Lá está o casebre. A mesma porta de madeira. A mesma palha sobre a terra. A mesma janela sem venezianas. Mas a garota já não é mais a mesma, porque garota já não é mais. Mulher, como foi a mãe dela um dia, como a avó, a bisavó e as ancestrais livres do lugar que ela nunca conheceu. E jamais vai conhecer. Zunduri não é mais. E por isso não pode mais. Não quer mais. Hoje não, hoje não.

Zunduri pode ver a Lua. Mas queria mesmo é a cegueira da escuridão. Quem deseja tanto uma mulher naquelas condições? Que homem é capaz de imaginar uma noite com alguém como ela? Mãe. Não posso, hoje não. Menezes não responde. Mostra a palha e Zunduri atende. O chicote está preso ao cinto dele. Deita com dificuldades, as feridas ainda doem. Melhor seria de joelhos, mas e a barriga? Não, não será possível naquela noite. Um corpo sobre o dela vai pressionar os cortes contra a palha seca. Palha dura. Palha áspera. Lâminas naturais que vão abrir ainda mais as feridas. Não, Menezes, hoje não.

Mas ele está em silêncio. Caminha sem sentido. Não ousa olhar para a garota. Zunduri não entende. Ele ainda está ali. Nenhum sinal do cliente. Hoje será diferente. É você, Menezes? É você hoje?

Ele não responde. Jamais, naqueles anos todos, Menezes contratou os serviços de Zunduri. O homem alto, de braços largos e barba pesada é empregado da fazenda. Claro que jamais poderia se tornar um cliente. O senhor não admitiria. Nem dinheiro tem. Teria ele levado a garota até ali sem consentimento? Não, Zunduri jamais aceitaria aquilo. Não com Kito no ventre. Menezes, eu não posso, eu não vou. Mas o capataz é o silêncio da noite. Caminha e nada mais. Não, Menezes, hoje não.

A brutalidade daquele homem é conhecida não só entre os negros daquela fazenda, mas também entre os de outras da região. É ele quem chamam a cada fuga. Um ninguém de movimentos pesados, de mãos duras, de olhar coberto por sobrancelhas grossas e que mesmo que não tivesse a mancha da barba jamais revelaria um sorriso. Não se mostra o que não se tem. Menezes vivia do sangue dos outros. Do chicote. Do espancamento. Do cheiro podre das feridas. Um demônio em trajes de homem branco.

Do canto do casebre, traz uma cadeira de madeira. Joga à frente de Zunduri e derruba o corpo. O chapéu, acomodou na palha. O lenço, ao lado. Com os dedos e as unhas pretas penteia o bigode. Não, Menezes, hoje não. Mas não abriu o cinto. Não tirou a camisa. As botas ainda estão nos pés. Apenas examina a negrinha jogada na palha seca.

Zunduri toca o manto encardido que cobre a nudez. Não, ele não quer ver. A garota desiste. O que então? O que você quer, Menezes? Só os grilos respondem. Ele levanta e se mistura às sombras de um dos cantos. Procura. Mexe. Bagunça. Derruba ferros, metais, ferramentas. Um som forte como a dureza de Menezes. E volta o silêncio. A conversa de insetos que caçam à noite. E a dúvida de Zunduri. O que ele quer? O que você quer, Menezes?

A resposta brilha na noite clara. Prateada, metalizada e com um cabo de madeira. Fina, porém fatal. Pontuda como a cabeça de um alfinete. A garota arrasta o corpo para trás até ser bloqueada pela parede. Não, Menezes, o que é isso, não, eu faço o que você quiser, mas deixa disso, coloca isso para lá, não,

o que você pretende, pode pedir, eu faço, eu faço. Ele apenas carrega o peso de seu corpo na direção da negrinha.

Ela se levanta, tocando a pele que separa a mão dela do próprio filho e implora ainda mais. Ele está perto. Está próximo. Chegou. A faca na mão direita. A faca subindo. A faca no alto. A faca no ar. É um golpe, um golpe fatal. Uma facada com o peso da mão violenta de Menezes. Mas Zunduri é rápida. Não como antes, mas ainda assim é veloz. A garota desvia e se afasta. Não, Menezes, não. Por quê? Por quê? Teriam os deuses escutado as orações? Mas e as súplicas que vieram em seguida? Ela não quer mais morrer. Não pode.

Um bruto que vive da morte não desiste fácil. E insiste com outro golpe. Feroz, selvagem, grosseiro. A garota não pode tentar segurar o braço dele, esta briga está perdida. A alternativa é apenas desviar. Desviar e correr. Mas seus pés já não carregam mais um corpo leve. Disparar noite adentro é colocar a vida de Kito em risco. Zunduri deve encontrar outra saída. Que cesse Menezes para sempre.

De que serve uma negrinha como você? Com um filho? Uma garota estragada, de corpo flácido. Uma garota sem serventia para a lavoura, sem serventia para a noite. A ordem foi dada, aceite seu destino, garota. Quanto mais rápido melhor.

Ela se joga à escuridão. Invade o breu do canto onde Menezes encontrou a faca e desaparece no preto. Escuro como a pele dela. Triste, apagado, nebuloso. E numa tentativa incerta de vitória, tateia no abstrato sombrio, um canto opaco e vago que pode salvar não só a sua vida, mas a de Kito. O pequeno que ainda não viu a luz. E da escuridão espessa Zunduri saca alguma coisa, um quê, algo enferrujado e sem função, mas que agora seria uma defesa, uma arma na luta desigual contra a morte.

E foi das sombras que a negra saltou. De olhos brancos e boca plácida, pintada por um sorriso de desespero. Foi do escuro, do negro e do preto, que Zunduri pulou sobre Menezes. Com o peso de um corpo que eram dois, lutando por uma vida que eram duas, a garota pressionou o ferro sobre o crânio de quem um dia já se chamou Menezes. E que agora é apenas uma forma de carne e osso, um tronco caído na terra.

A garota engatinha para fora. Lágrimas, saliva e suor pendendo do queixo. Misturando-se à terra. Esparramando-se no chão da fazenda onde estava destinada a viver e morrer. E com a força de quem luta por um sopro de esperança, ergue o corpo na noite clara e corre pelo caminho que cruzou com Menezes. Leva o ar seco com cheiro de pó para os pulmões, sugando a energia que precisa para seguir em frente. Sufoca.

Banhada em prantos e suor, sacode Ashia. A garota acorda não só a velha, como os outros também. Ele ia me matar, ele queria me matar. Eles despertam no desespero, vão à porta procurando por alguém, acodem a negrinha nos braços, limpam seu rosto e sua mão, tocam a barriga, procuram por cortes e ferimentos, mas encontram apenas os do chicote.

Aqui você não pode mais ficar, resume Ashia. Nem você nem Kito serão poupados. Fuja, aproveite a noite e corra. Vá para o mato, embrenhe-se nas florestas, beba do rio, coma da mata, vá e se esconda. Amanhã veremos como ajudar.

Zunduri ouve calada. Não é a liberdade que procura nem o caminho para Kito. Venham comigo, vamos juntos. Ainda demora o amanhecer, ainda não sabem de Menezes. Temos horas de vantagem, temos uns aos outros. Akili, eu preciso de suas mãos, de seus braços, de sua força. Avo, sua inteligência é tudo para nós. Ashia, sua experiência, seu conhecimento, venham comigo, vamos todos. A hora é agora.

Ashia não se levanta. Akili está em pé num canto. Avo permanece na porta vigiando o movimento. O resto também está parado. O convite não foi aceito por ninguém. Zunduri está só na presença de todos. Vá, garota, vá. Você não pode mais ficar, vá agora. Não vou, não sem vocês. Por favor, venham comigo, vamos juntos. Vamos para a mata como Ashia disse, vamos para os rios e para as árvores, vamos agora. Juntos. A garota que orou pela morte está disposta a lutar pela vida. Da desesperança e do abatimento nasceu a coragem para seguir em frente. Mas Zunduri atravessa o batente sozinha. Não olha para trás. Vá, Zunduri, vá, amanhã a gente saberá o que fazer, vá, ainda diz Ashia antes da negrinha se tornar a escuridão. Tetro.

Mas do casebre vem a luz.

Uma faísca rompe a negritude da noite e faz par à claridão da Lua.

Um som seco.

Dois sons secos.

Sons seguidos.

Intervalados.

Ruídos que cortam o ar.

E lá no campo, no mato verde da primavera, iluminada pela noite cheia, Zunduri veste um longo vestido vermelho, rendado por balas douradas da pistola de Menezes, de tecido comprido bordado por anos de sofrimento e angústia, sacudido pela brisa da noite. Como uma dama dos submissos, uma senhorita em trajes vermelhos de gala, uma rainha sem coroa, Zunduri deixa a fazenda e parte, ao som da voz de Ashia, que mesmo ao longe empurra. Vá, Zunduri, vá. Amanhã a gente ajuda, vá. Leve Kito, leve tudo. Vá, minha menina, vá.