Quinta-feira santa. Findara
a celebração da Missa em particular comemoração ao que ela representa: o dia da
instituição da Eucaristia e consequentemente, do sacerdócio. É a
esses ungidos que compete celebrá-la “em memória de mim” (Jesus).
Depois da oração final o Celebrante
ainda deu alguns avisos. Entre mais, disse: “por essas horas Jesus tendo sido
preso e condenado, está sendo torturado. Amanhã, celebraremos sua morte”.
Premida pelo compromisso
que tinha em seguida, sai logo da Igreja, mais tarde, deitei-me para dormir.
Eis que nesta manhã, ao despertar, me lembro que Jesus se encontra em apuros, na
mão dos seus algozes. E o vejo exangue, corpo em chagas e insultos indizíveis
brotam de cada lábio daqueles insanos que parecem ansiosos pelo passar ainda
mais rápido das horas para levá-lo ao patíbulo infame.
Detenho-me alguns
instantes na observação desses fatos, quando reparei que se revezavam nos
açoites. O que cedia o chicote, não o fazia sem antes golpear-lhe mais uma vez
a cabeça, onde a coroa de espinhos pontiagudos, a certo ponto, se entortavam no
contato com o osso do crânio e da fronte que só por milagre, não conseguiam ultrapassar.
Como prêmio recebiam mais uma dose de uma bebida certamente alucinógena, que
aumentava-lhes o ódio e o desejo de matar.

De repente, sou impelida a
levantar-me, vestir-me, tomei meu café sim, não deixei sem cumprimento nenhuma
parte dessa minha liturgia matinal. Mas claro que acelerei e reduzi o tempo.
Logo estava pronta, fechei a porta do meu apartamento por fora, desci pelo
elevador, ganhei a rua disposta a ir ao encontro de Jesus, unir-me aos amigos
que o acompanhavam.
No portão, pergunto-me que
direção tomar e sem esperar resposta, vou em frente. Estou decidida, preciso
encontrar Jesus.
A manhã está ligeiramente
nublada, fresquinha, mas ainda assim brilha o sol. As ruas estão limpas, o ar é
bom, as folhas das árvores não estão tristes, balouçam ao ritmo do vento que
sopra. Poucas pessoas trafegam pelas
ruas, estarão possuídas pelo silêncio da prepotência imposta pelo julgamento
cruel.
- Por que aquela caixa ali?
Ao aproximar-me, vejo que há duas pessoas que forraram a calçada com outra caixa
e dormem embaixo daquela. Os pés estão sujíssimos da caminhada sobre o pó preto,
privilégio desta cidade. Roupas velhas, desbotadas e sujas também.
Passo, só pude ter
compaixão naquele momento, não lhes ouso perturbar o sono que me parece
profundo apesar do ambiente.
Mais a frente, um
adolescente louro dá sinal de que acordara por ali. Num bocejo enorme, expõe
por inteiro o interior de uma boca pouco saudável, de dentes que começam a enegrecer.
Prossigo e vejo aquela
senhora que com uma criança nos braços envolta “em faixas”, corre afoita rumo ao
primeiro ponto de ônibus que encontra e olha ansiosa a chegada de cada
coletivo. Ao ver que os primeiros a passarem não eram o que a levaria ao
hospital infantil demonstra enorme desalento. Refaz-se, renova a expectativa.
Ao surgir o que a interessava, entra rapidamente e parece um tiquinho mais
tranquila.
- Que é aquilo, gente? Dois
policiais espancam severamente um rapaz já rendido, antes que eu chegasse
perto, vejo-os empurrarem para dentro do cofre da viatura e saírem em disparada.
Acabara de furtar um celular.
Por aquela via
perpendicular pela qual eu seguia, vejo sair de uma transversal um casal, mais
outro e outros mais. Aprofundo o olhar e vejo que rumavam à Igreja lá no final.
Vão adorar Jesus, em oração, acompanhá-lo até a hora nona do seu sacrifício.
Na minha busca, no meu ir
ao encontro de Jesus, vou imaginando tudo que ia acontecendo. Contemplo-O, quando aos empurrões e açoites é
posto para fora do lugar do tormento (o sinédrio), quando lhe põem nos ombros a cruz pesada,
quando cai e se levanta.
De repente, não posso
conter a interrogação: “Deus meu, por
que os abandonaste”? Vejo Maria, sua mãe, que ao ficar sabendo da condenação
veio-lhe ao encontro, chega acompanhada de outras mulheres. Diante do que vê não
pode calar o que na alma explode: “vós que passais, vede se há dor maior que a
minha dor”.

No Gólgota, a profecia do
velho Simeão lhe ressoa aos ouvidos: ele tinha razão. Uma espada de dor
transfixa o peito de Maria. Mas tem oportunidade de assistir a mais um gesto
corriqueiro dos que praticava nas estradas da vida. Concede ao ladrão que lhe
pede: “hoje mesmo estarás comigo no paraíso”. Como poderia não sofrer tanto,
vendo o filho ser desnudo, deitado na cruz, ser crucificado. Esvair-se, clamar
pelo Pai, receber vinagre ao invés de água, ao clamar “tenho sede”. Finalmente,
expirar depois de um grande grito, ter o peito furado por uma lança de soldado
frio, de onde saiu a última gota de
sangue.

Sexta-feira santa, dia de
silêncio, de respeito. Encontrei parte dos Jesus que sofrem em cada uma das
pessoas que citei: “aqueles que não têm onde repousar a cabeça”, os que dormiam
na calçada; aquele que é desprezado ou considerado sem importância por ser
“filho de um simples carpinteiro” (ou de
quase ninguém), o adolescente que despertava; as mulheres angustiadas que
correm em busca de tratamento para os filhos doentes, como a cananeia; os
esquecidos pelo Estado que não os educou na infância, mas uma vez adultos tem o
desplante de punir pura e severamente. Os que descobriram o valor da fé e que
seguem nas práticas sugeridas pela Igreja assegurando-se a vida eterna. São os que entoarão aleluias na páscoa!
Eu sabia que Jesus, aquele
que “renunciou à sua condição de Deus, despiu-se de sua natureza, humilhou-se
até a morte e morte de cruz” não estaria por ai, mas não tenho dúvida de que em
todos os que encontrei ele estava. Ele está em todos, máxime nos que sofrem.
Passei por aqui, por esta escrevinhação-reflexão bem umas
três horas. Valeu como imersão no clima de Paixão do Senhor.
Renovo meu propósito de servir
e repetirei sempre como o fez o Mestre, “eu vim para servir”.
Marlusse Pestana Daher Vitória,
3 de abril de 2015 12:40.