Gosto da vida plena de gozo e sonho! Por isso vou seguindo trilhos estreitos e estradas largas que me dão oportunidades de colher flores e furar-me nos espinhos atrevidos. Sou feita da virilidade inventada e procriada nas artimanhas da vida dura. Seca, conforme a plantação dos cafezais das terras frias, na chegada de um verão impróprio.
Quente como a chaleira de
ferro sobre as lenhas entrepostas no fogão de barro branco das antigas roças,
com seus esquecidos habitantes. Sou a tempestade que extravasa as cumeeiras dos
casebres quase sempre mortos, com seus moradores.
Nas entrelinhas da minha poesia às vezes suja e borrada de lágrimas, lembrei-me
de ti, esperança latente, correndo nas vísceras dilaceradas. Permiti que
ficasses acomodado na minha entranha e ali permanecestes por longos dias e
meses de espera. Tu vieste afável como nasce o anjo em sua total plenitude e
carência. Aprendestes os primeiros sons que se transformaram em palavras, os
primeiros passos que engatinhamos juntos, as mesmas estradas sempre na mesma
pequena sala. Dei-te alimentos especiais, alimentei-te com leite quente
esvaindo dos bicos rachados com o gosto de sangue vivo. Dei-te os sonhos,
versos e poesias, mas também dissabores de gestos e acenos de mãos contrapondo
suas vontades. Sorrimos juntos e choramos as mesmas lágrimas, as primeiras
decepções, pois participávamos do mesmo cotidiano. Nascestes majestosamente e
fizestes retornar o fluxo sanguíneo que fora interrompido durante a sua morada
em minhas entranhas coadjuvando com as nossas vitórias, conquistas e derrotas.
Quando mergulho, sobre as dobradiças do tempo, sinto o sabor da tarde em outono seco com suas folhas esvoaçantes, desprendendo das frondosas arvores. Sinto-me na metamorfose da vida. As nossas mais loucas vontades e experiências que na medida do tempo estancam, correm, saltitam e desligam-se do corpo como o próprio cordão umbilical, impedindo contatos atrelados, vidas interligadas, mantidas pelos elos afetivos profundos, porém, separados como abstratos voos de borboletas.
Tornei-me mulher, primeiro ao procriar e depois, com a poesia. Fiz-me forte como os arbustos que o vento praiano retorce, mas fincam raízes profundas nas terras do ninguém, dentro da minha própria colônia de pescadores. Enquanto viver, sentirei os aromas de peixe cozido, maresia e suor do pescador arredio. Colho assim, vida!
Respiro a liberdade das redes soltas e esparsas todas as manhãs e tardes em meio ao mar, colhendo cardumes variados para o jantar da noite no Pontal. Na mesa farta com peixes de olhos arregalados em bandejas envelhecidas, o abacaxi floresce bem dentro do vaso com água, pois representa a esperança de dias melhores do labutar do braçal trabalhador desta região. Percebo com relutância, o tempo que nem quero contar. Prefiro a liberdade da minha juventude chegando sorrateira ao meu envelhecimento precoce. Penso que somos a fantasia de nossas próprias inverdades contadas, que podemos através dela, controlar os dias de sol, sabotar as horas noturnas, colorir as cores do arco-íris, colher os sonhos e sons e plantá-los em nossa poesia.
![]() |
Bárbara Pérez, a escritora do mês na "Quinta Cult". |
Como nos casulos, viveremos, desatando os nós e teias, refiro-me, portanto à
poesia desfolhada em papel virgem, aprendi que devemos reaprender a brincar de
amarelinha, soltar pipas, correr de pique esconde, molhar-se na chuva de verão,
colher vento, capturar segredos, jogar amontoados de barro de chuva nas janelas
fechadas, desvendar mistérios e treinar novamente os primeiros passos. As
estradas podem não ser as mesmas e as pernas precisam de desafios. Como a
primeira dentada na maça que estava pintada na xícara de porcelana da vovó,
devemos recomeçar as mordidas ilusórias e até na linguagem e costume universal,
desafiador dos tempos avançados. Nascestes de mim, como a borboleta presa em
seu casulo encolhido na folha seca e úmida do sereno noturno, mas não me
pertence.
A borboleta que ganha espaço e liberdade, somos assim, talhados de sonhos e
sobressaltos. A qualquer momento o homem trará de volta a pequena criança de
cabelos encaracolados para o meu colo, pois bem sei que a guarda dentro de ti
como se estivesse ainda no interior do casulo escondido em sua alma cansada de
dias sonoros e loucos. Que sejamos sábios em nossas buscas e esperas, pois
somos como o casulo e a borboleta e explodimos para viver em plenitude e
poesia.
Bárbara Pérez.
Escritora, Presidente da
Academia das Artes, Cultura e Letras de Marataízes e do Estado do Espírito
Santo.