sábado, 31 de dezembro de 2016

ODE A EUTERPE


                          André Luiz Soares, vencedor de vários concursos Brasil a fora.

Há poucos dias, uma criança me perguntou: qual seria a coisa mais importante do mundo? Sem titubear, respondi: música! A expressão em seu rosto foi de desapontamento. Bem provável que ela esperasse ouvir algo como saúde, felicidade, paz e amor. Não resta dúvida que esses são aspectos fundamentais à vida com qualidade; contudo, um tanto instáveis e passageiros – isso quando não excludentes entre si. Quantas pessoas realmente conhecem paz ou amor? Já a música oferta o ao espírito o sentimento confortável mais amplamente democrático que – a despeito do ponto geográfico, da raça ou da classe social – alcança a todos, indistintamente!

Considerando-se que pássaros, baleias, águas e trovões, entre outros, contêm em si imensa musicalidade, talvez a inspiração seja a natureza. Porém, prefiro supor que Zeus, apiedando-se da sofrida alma humana, tenha permitido que a própria filha aliviasse as dores do mundo. Então, Euterpe – musa do prazer e da música – nunca mais nos abandonou.

Música é algo tão divino, que nem precisa ter alta qualidade para agradar. Qualquer caixinha de música – velha e desafinada – arranca deliciosos sorrisos das crianças. Basta um radinho de pilha, em ondas curtas, para encher de alegria um pobre casebre, no meio do mato. E quanto às religiões – do Budismo à Umbanda; do Cristianismo ao movimento Hare Krishna – duvido que alcançassem a popularidade atual, se não houvesse belos cânticos na maioria de seus ritos. Porque a música nos fala diretamente ao espírito.

Não raramente, outras artes a ela se rendem. O que seria do cinema se a música não conferisse toda sorte de sentimentos a cada uma das cenas? Será que mesmo as expectadoras mais românticas teriam derramado tantas lágrimas – como, por exemplo, o fizeram em Ghost ou Titanic – acaso a trilha sonora fosse composta apenas de silêncio e sons ambientes? Não creio! E a dança... existiria balé sem música? Possivelmente, sim – mas teria a mesma graça?

Música é também força. Nos Estados Unidos, o rock, o soul e o folk ganharam caráter universal e humanista ao unir vozes contra as guerras. No Brasil, a música popular incomodou bravamente a ditadura militar. Já o reggae fez com que, pela primeira vez, todo o resto do planeta lançasse um olhar solidário ao tão sofrido povo centro-americano.

Desconheço contexto em que a música não possa se inserir. Nos esportes – seja para incentivar o time do coração; seja para provocar o adversário – as torcidas ostentam orgulhosamente seus hinos. Entre os apaixonados, é raro o casal que não tenha eleito uma música como símbolo maior de seu amor: aquela que o faz mais unido ou que torna suportável a saudade. Do mesmo modo, em locais comumente tensos, como consultórios dentários, a música instrumental se constitui artifício contra o medo da dor. E falando em dor, até a morte pede auxílio às marchas fúnebres, para acentuar – gravemente – a tristeza do último adeus.

Por todas essas tantas e intensas vertentes é que pergunto: quem, mesmo que por breve momento, nunca sonhou ser um músico? Quem não cantou embaixo do chuveiro, imaginando ser ídolo à frente de uma banda? Posto que a música, por seu caráter celestial, até fabrica deuses – homens e mulheres, acima do bem e do mal, eternizados por suas vozes únicas ou por suas formas ímpares de tocar um instrumento.

Melhores que os deuses gregos, os deuses da música não necessariamente precisam ser fortes, belos ou profundamente sábios, para arrebatar centenas de milhões de fãs delirantes e fiéis – seria a imperfeição humana, aperfeiçoando o sagrado? Talvez. Pois a música inverte tendências, ensinando quão perigosa é a visão estática de mundo. E foi por pensar assim que evitei, de forma contundente, falar a respeito de gosto musical.

Há muitos anos – ainda em Brasília –, trabalhando no escritório em plano sábado, irritou-me alguém cantarolando, intermitentemente, ‘eu não sou cachorro, não / pra viver assim, tão humilhado...’. Sem atentar à questão de direito, fui à sacada com o intuito arrogante de fazer calar quem quer que fosse. Mas o que vi foi um maltrapilho, de aproximados quinze anos, remexendo a lixeira da padaria e fartando-se de restos de comida, enquanto cantava. Recuei envergonhado. Afinal, sempre fui grande admirador do engajamento artístico. Guardava com orgulho meus ingressos de shows de Caetano Veloso, Chico Buarque, Milton Nascimento, Mercedes Sosa entre outros.

Então, como eu poderia interromper aquele instante mágico? Na voz de Waldick Soriano, aquela música sempre fez pouco sentido para mim. No entanto, cantada pelo menino de rua que comia lixo à luz do dia – em um bairro rico da capital do País – tornara-se a mais concreta e dolorida canção de protesto que eu já ouvira. Timidamente voltei à sala convencido de que – não importando o estilo – a música sempre teria muito a me ensinar.

E se às vezes a música parece doente – escravizada por quem a produz sem critérios, em nível industrial, até torná-la descartável – saiba que tal conotação não a traduz nem limita. Porque, a despeito da roupagem que lhe foi dada através dos séculos, a música tem sido sempre essa alma superior: advinda do Olimpo; musa e mãe generosa que a todos conforta – nos melhores e nos piores momentos.
 
 
André faz parte dos Correspondentes da AMALETRAS  que no dia 18 de fevereiro em sessão solene do encerramento do Ano Literário "Elza Cunha" lhe conferirá menção honrosa pela sua intensa criação literária.


 

 

domingo, 25 de dezembro de 2016

RESPOSTA DE DEUS

Um Menino é a resposta de Deus às nossas perguntas

“Encontrareis um recém-nascido envolvido em faixas e deitado numa manjedoura” (Lc 2,12)

Natal: estamos em um tempo que nos fala do essencial: um Deus que se faz carne, o divino que se faz humano; o eterno se estremece diante do que é terno; o infinito abraça amorosamente a fragilidade...
Viver este mistério é viver em Deus, compreender até onde chega a loucura de amor de um Deus que se humaniza para que nos humanizemos. “A humanidade de Cristo é a humanidade vivida à maneira de Deus, ou melhor, vivida por Deus” (José Arregi).
“Deus se humanizou”: tal expressão revela que a Misericórdia de Deus significa também ternura.
Apareceu um Menino: apareceu a ternura e a doçura do Deus que salva. Na fragilidade de uma criança se esconde e se revela a grandeza divina. Uma antiga tradição religiosa afirma que a maior seriedade de Deus aconteceu quando Ele virou menino. Louca aventura amorosa de Deus!
No rosto de uma criança se faz visível a Misericórdia que desce sempre mais abaixo, que nasce no ventre da terra e se faz terra fértil.

Segundo Jacob Boehme, místico medieval, Deus é uma Criança que brinca..
É nessa atmosfera “infantil” que Deus se aproximou de nós. Não veio como um imperador poderoso nem como um sumo-sacerdote ou um grande filósofo. Deus pode ser encontrado não na estrada suntuosa do domínio e do poder, mas na estrada da doação, da partilha, da solidariedade... A única explicação da “descida” de Deus é seu “amor compassivo”. Ele mergulhou na nossa fragilidade fazendo-se uma criança pobre, que nasce na periferia, no meio de animais, deitada numa manjedoura... para que ninguém se sentisse distante d’Ele, para que todos pudessem experimentar o sentimento de ternura que  uma crian-ça desperta e sobre quem nos dobramos, maravilhados. Criança não infunde medo; todos se aproximam dela. Pequenino com os pequeninos, Deus nos faz proclamar silenciosamente:
                “Meu Deus, me dá cinco anos, me dá a mão, me cura de ser grande...” (Adélia Prado).
É a fragilidade de uma criança que ativa em nós a atitude da expectativa, da novidade, do assombro...
Cada nascimento é um sinal, um imenso milagre, uma bela promessa, um profundo chamado. Viver é milagre. Só ser já é milagre. E o maior milagre é a ternura que cuida, nutre, consola. Isso é “Deus”.

Dizia o pintor Pablo Picasso que tornar-se criança leva tempo, e poderíamos acrescentar que somente o encontro com o Deus Menino nos devolve a pureza e a inocência primordiais. Quando nos fazemos presentes junto à Criança eterna, então brota em nós o impulso para a renovação de vida, o despertar da inocência escondida, o encontro com novas possibilidades de ação que correm em direção ao futuro.
O Natal é essa ternura que ilumina a história humana, o cosmos do qual somos parte. É a confissão de que a bondade gera e sustenta a vida. É crer que tudo está eternamente movido por um pulsar profundo, criador, maior e mais poderoso que o universo, mais terno e pequeno que o coração de um recém-nascido. É a promessa de que o bem prevalecerá.
Ao recuperar o olhar de assombro e de espanto no interior da Gruta de Belém, nossa mente se abre à imaginação e ao sonho, começamos a considerar as infinitas possibilidades para ser e conviver, brota a alegria do novo, do que está nascendo a cada instante, de explorar recursos inéditos e desconhecidos.
Natal é o tempo para acolher com ternura o que é germinal, o pequeno, o que nasce nos movimentos sociais e humanitários alternativos e nos grupos eclesiais que se empenham por um mundo novo e por uma Igreja mais sintonizada com o sonho de Deus. É o momento de sair para os excluídos, para aqueles que não podem chegar até nós.

Ao entrar na gruta para contemplar o Menino-Deus, conectamos, ao mesmo tempo, com o mais profundo do coração humano, carregado de compaixão e generosidade. A bondade humana é uma faísca que pode se atrofiar, mas jamais se apagar. São necessários alguns momentos densos para que esta chama seja ativada. A vivência do Natal é um deles.
Da “Gruta de Belém” à “gruta interior”: esta é a aventura que nos leva a crescer, amar e compartilhar com os outros o dom da vida; aprender a ver nas pessoas a grande reserva de bondade, altruísmo e generosidade que carregam dentro de si; nunca conformar-nos com a injustiça e a violência, semeando cordialidade e gentileza a todos (as); e, sobretudo, ser mestres da esperança. “...porque é de infância, meu filho, que o mundo precisa” (Thiago de Mello).

O Menino Deus, em Belém, nos oferece uma maneira nova de olhar a realidade e a fragilidade de tantas pessoas. A contemplação de Jesus em seu nascimento nos ensina a contemplar a fragilidade e a exclusão
humana como uma forma de presença de Deus. Deus está entre nós como fragilidade, nos excluídos, nos pobres, nas carências de todo tipo, em cada uma de nossas limitações. Por isso mesmo, sair, descer ao encontro das carências humanas, é uma forma de peregrinação para o coração do Deus mais vivo e surpre-endente. Com os mesmos passos com que nos aproximamos da fragilidade dos que sofrem, também nos aproximamos de Deus.
A partir dessa debilidade podemos sentir que passa por nós a força de Deus, seu santo braço, que transforma, com nossa ajuda, toda a realidade.
Se Deus correu o risco de encarnar-se, de nascer pobremente e crescer como salvação a partir da exclusão deste mundo, já não há excluídos para Ele, ninguém fica fora d’Ele. E o lugar principal para a festa é ali onde Ele aparece: nos aforas, onde não há lugar, onde tudo parece esgotar-se e é condenado a crescer em meio às ameaças e às intempéries das situações humanas.

O Nascimento de Jesus é um atrevimento, uma verdadeira ousadia, uma surpresa inimaginável...; na verdade, o Natal é a manifestação do impossível que se faz possível no coração de Deus.
“Ele é o eterno Menino, o Deus que faltava; o divino que sorri e que brinca; o menino tão humano que é divino” (Fernando Pessoa).
Agora temos um Deus menino e não um Deus juiz severo de nossos atos e da história humana. Quê alegria interior sentimos quando pensamos que seremos julgados por um Deus Menino! Ao invés de condenar-nos, ele quer conviver e entreter-se conosco eternamente.

Texto bíblicoLc 2,1-14

Na oração: Que saibamos escutar a nossa criança interior
                     que clama por ser amada, acolhida, curada de tanta mesquinhez, intolerância, e indiferença.
O Natal é como um poema; nele Deus se revela como uma Criança, pois nos mostra que a vida é sempre dom, novi-dade que destrava a humanidade para expandi-la por inteira. Que o Deus Menino que vai nascer nos mostre o caminho da verdadeira beleza da vida, e a graça de nunca perdermos a alegria de ser e viver.
Deus seja louvado!
Um abençoado Natal a todos!

Pe. Adroaldo sj




sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

É NATAL

FELIZ NATAL!

O tempo de Natal nos coloca numa atitude de quem espera e, se espera é porque deseja, ou então, porque ainda não tem.

Natal é uma entre as tantas manifestações do amor de Jesus por nós. Só o amor, e não qualquer amor, mas amor de Deus, Jesus é Deus, justifica a capacidade de renunciar à própria natureza divina e fazer-se homem, sujeito a todas as fragilidades comuns aos homens, à natureza humana, para restabelecer o elo quebrado da aliança de fidelidade feita por Javeh com o povo eleito, o povo escolhido como seu povo.

Apesar de saber dessas coisas, ainda existe quem seja capaz de ficar indiferente, ou de não se tocar, não se comover, conviver com a realidade, de forma tão natural que acaba transbordando na indiferença. Sabe que tudo que tem, que é, se pode alguma coisa, é pela graça do Espírito Santo, mas “vai tocando a vida sem compromisso ou deixando-se levar”.

Quem estiver diante de tal insensibilidade ou fraqueza, que se pergunte: eu sou capaz de entregar a minha vida para salvar a dos outros? Foi o que Jesus fez. Esses outros são muitos, muitos, gerações de outros. Jesus foi capaz.


Que Jesus nasça no nosso coração, eliminando a indiferença da nossa alma e abrindo-nos ao seu amor para ser despejado a serviço de quem precisa, na construção do mundo, grande lar em que habitam irmãos, os que chamamos ao mesmo Deus de Pai. 

Marlusse Pestana Daher

EU SOU A POESIA



Stênio Cláudio Afênix


Eu sou a poesia
Em cada batida do meu coração, a poesia me acompanha em cada pulsação
Transpiro sonetos em minha respiração, faço isso com muito gosto e sem preocupação

Minha alma flutua no ritmo da arte e da criação
Em cada poema deixo pedaços de mim como recordação
Minha vida é uma poesia e isto é uma demonstração.
Eu sou a poesia!

Sim e trago ela com educação, sinto a todos os dias e não há melhor sensação
A vida é um poema desde a sua criação
A natureza declama beleza e harmonia sem hesitação
A brisa marítima e o opor do sol juntos fazem uma linda canção
Apreciar a literatura do universo é a minha intenção.
Eu sou a poesia!

Claro como aquela chuva que vem sempre na sua estação
E trás com ela o arco-íris para fazer uma orquestra com improvisação
Irradiando cores por toda direcção
A poesia é o sal do mundo que conserva a boa emoção
O oxigénio que precisamos para respiração
O equilíbrio perfeito de carbo - hidrato com gordura para nossa nutrição
Poemas bem feito servem para nossa alimentação.
Eu sou a poesia!

Com certeza como o milagre do ADN que mantém viva a nossa geração
O ingrediente necessário para começar uma revolução
Acreditar na mudança e pensar em inovação
Eu sou a poesia sim para vossa satisfação.



Catedral de Nossa Senhora dos Remédios em Luanda


Stênio Cláúdio Afênix é de Angola, Prrovíncia de Luanda,
cidade do Kilamba



VERGONHA



Flores para Cláidia que a vergonha seja somente efeito poético

Sinto-me ralé.
Estrela sem brilho
Num firmamento escuro.

Sol sem calor
Num dia sem luz.
Machuquei teu sentimento
No teu lado mais puro.
Sou pior que o ladrão

Que morreu lá na cruz.


Sinto-me estranha,
Um nó na garganta.

Um choro contido
Precisando sair.
A tristeza é tanta,
Esta culpa é tamanha,
Que mesmo escondida
Envergonho-me de ti.






quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

É A VIDA QUE SEGUE...

ISA DOS SANTOS MARIA PRADO
Itapetinga - SP

Estava no velório de um conhecido, velório cheio de gente amiga, cheio de flores e muito choro como é o certo, pelo passamento de alguém querido, quando do outro lado da sala dividida apenas por outro caixão, uma senhora de cabelos bem branquinhos que pareciam feitos de painas, olhos azuis de contas, muito bonita em seus sessenta e poucos anos, numa ternura comovente, encontrava-se solitária ao lado do marido morto.

Ao centro o próprio “Demo”, diziam... O próprio encardido em carne e osso, mais osso do que carne, muito magro e alto, um verdadeiro homenzarrão, (só no tamanho) já que, segundo as más línguas... O tal não valia nada, não prestava, não valia o feijão que comia. Enfim, daqueles que não tem ninguém que queira segurar-lhe a alça do caixão.

Defunto grande, aquele! Ali estendido bem no centro da sala, sem ninguém a rodear-lhe. Sujeito rude, que fizera má fama, tanto que não havia parentes, amigos, filhos nenhum a lhe guardar. Por certo guardavam eram as más lembranças do fatídico e de suas maldades.

Quando saiu o enterro ao lado, ao qual eu realmente tinha ido, restou apenas aquela doce senhora a guardar o defunto mal amado. Abismada não pude me retirar e ali permaneci a fazer companhia àquela pobre mulher, que em silêncio aguardava o horário do enterro.

O velório ficava na rua principal que dava direto ao cemitério, e lá do alto cheio de cruzes branquinhas, frondosas árvores compunham um cenário que parecia de filme, num lugarzinho discreto, onde dali algumas horas seria sepultado o “Peçonhento”.

Cá embaixo, preocupada a zelosa esposa se perguntava quem carregaria o caixão, visto que pelo adiantado da hora não tinha aparecido ninguém para tal incumbência. Eis então, que penalizada, pus-me a fazer café como de costume nos velórios das cidades do interior. Certo é que, serve-se café para as pessoas que estão prestando condolências e passaram a noite ali. Bem, como não havia uma viva alma além de nós duas e o “Amaldiçoado” e este é claro não poderia fartar-se mais de tal iguaria, então sem pestanejar saí às ruas e pus-me a convidar os passantes para tomarem um cafezinho esperto, como diria minha irmã Nancy.

Pois, não é que deu certo! Alguns poucos desavisados entraram para tomar o cafezinho, embora esconjurando o ‘Defunto’, mas permaneceram, ainda que a contragosto para carregar-lhe o caixão, que, finalmente desceria à sepultura.
Faltava ainda quem lhe encomendasse a alma...

Aí a coisa ficou preta! Mais preta que o terno do valente, afinal quem haveria de lhe encomendar a alma se o seu inventário de maldades já anunciava para onde o famigerado iria?

Foi quando, atraídas pelo cheiro do cafezinho, algumas crianças saídas da escola que ficava ali perto, adentraram inadvertidamente o velório e claro, logo foram seguidas por suas mães.

Aleluia! Estava formado o coral, para o conforto da esposa solitária. Assim, unidas três cabecinhas num mesmo véu (já que só a esposa do defunto trazia-o para suas orações), viram-se as pobres mães, que congregavam da mesma fé, obrigadas a entoar belos hinos de recomenda de alma.

Nunca cantei tão forte e alto um hino do qual nem me lembrava a letra. No entanto como o refrão saiu bonito! Bonito mesmo! Tanto que cá pra nós, teve um momento que até me empolguei e acabei desafinando, mas deixa pra lá.
Fechado o caixão sob o olhar agradecido daquela senhorinha, afastei-me, honestamente refletindo sobre um velho ditado popular que diz... Bem você já deve saber qual é, e se não souber pense no qual lhe aprouver afinal:

É a vida que segue...


terça-feira, 20 de dezembro de 2016

CRUELDADE SEM SAÍDA

                                                    Kaliane  Alves, concorrente                                                                   do Concurso Literário ELZA CUNHA


Oh, triste e não humilde mundo,
Oh, cruel e devastador és.
Atinge-nos a cabeça e derruba-nos os pés,
Detona-nos e ataca profundo.


Revira os neurônios e nos leva a vida,
Violenta-nos, nos bate e nos esquece.
Com tanta doença, nosso corpo apodrece,
Com tanta violência que não é detida.


Fora eu um pedinte de esmola,
Que dentre um milhão, todo mundo esnoba,
Queria tanto ascender na vida.


Hoje sou eu um escravo da violência,
Não mereço, mas sofro as penitências,
Quero sair dessas ruas sem saída.



segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

CICATRIZ

Fran D. Menengussi                  São Mateus - ES

E a minha cicatriz ainda continuava aberta quando veio um novo corte. 

Foi apenas no ano passado que perdi minha filha, moça já criada e mãe de primeira viagem, se foi sem me dizer adeus, nem aviso. Ruptura rude de um laço fraternal único, cicatriz na alma forjada no fogo trazendo uma dor imensurável.


Como dizem, sobrevivi ao ano catando cavaco e os cacos, lutando e aprendendo a ser mãe do meu neto, sorrindo e o acariciando com o olhar para que aquele bebê de apenas sete meses se sentisse amado duplamente, tentando estancar dores e lembranças naquele pequeno coraçãozinho. Mentalizando sempre positivamente na busca por um amanhã melhor.

E o amanhã chegou contrariando as expectativas, cheio de medo, dor e luta. O câncer que sempre vi como um atestado de óbito veio como me provando, me testando e perguntando: até onde vai a sua fé...

E, vieram mais cicatrizes internas e externas, três cirurgias, cti, cinquenta e quatro dias resfolegando por vida. E Deus permitiu que eu voltasse, Ele, uma equipe médica sábia e humana, amigos em constante oração e uma família amorosa. Como amo ter no meu sobrenome a palavra Duarte, como esse povo maravilhoso e altruísta consegue ser sustentáculo na alegria e na tristeza.

E os meus cabelos caem por onde ando e vejo neles, espalhados pelo chão, a perda daquela que fui um dia. E esse novo eu que não compreendo, não entendo e não controlo, me apavora. Logo eu, que sempre fui um livro de autoajuda ambulante, com respostas certas para as dores da vida, autoestima nas alturas, sou tomada por tamanha fragilidade.

Quando o meu olhar no espelho reflete esse novo eu, que desconheço, tento de todas as formas conectá-lo, buscar parâmetros e referências para retomar a posse daquela que fui. Mas, não reconheço o meu físico, perdi o estofamento do corpo e da alma.

E como é difícil ser piegas: olhe o horizonte, respira o ar, sorria para a vida, bendizendo a todo instante a sua sorte de estar viva.

Mas, nesse cruzamento da nova com a antiga, encontro perseverança, resiliência e uma fé redobrada. Descobri no tempo, que cicatrizes vão se curando e modificando as nossas histórias, que por mais sofridas que sejam tornam-se bonitas por nos descobrirmos fortes e sobreviventes. Temos um apego tão grande com a vida que aprendemos a conviver com elas. Mas nunca esquecê-las...


sábado, 17 de dezembro de 2016

SEGUINDO PEGADAS


                                                 Alex Giacomim Rebonato                                                       Concorrente do Curso Literário Elza Cunha                                                                                                                                                                      
O dia amanheceu claro como costumava acontecer no mês de abril. A fina chuva noturna, que geralmente vinha ali por volta das três da manhã, deixava o ar límpido e fresco, possibilitando que os primeiros raios de sol alcançassem a terra sem ter de enfrentar qualquer resistência de poluição.

Ele não prestou atenção em nada disso quando abriu os olhos, quase no mesmo instante em que o primeiro galo começava a cantar, mas sabia que era dessa forma. Nunca havia sido diferente.

Os galos, pelo menos, ainda cantavam. Bom sinal. Mas ele sabia que o seu problema eram as galinhas. As gordas, promissoras e bem tratadas galinhas. Vinham delas os ovos que serviam de alimento e até como uma fonte de renda extra para a família, e ele tinha que resolver o problema tão logo fosse possível.
Foi mais por isso, e não por querer ignorar a implicância do vizinho Pereirinha sobre ele estar perdendo pro lobo, que resolveu não ir à igreja no domingo de manhã. A capela sempre fora o destino da família nas manhãs de domingo, e apesar de precisar pedir a Deus que lhe desse paciência e serenidade para resolver o problema, também não queria dar chance para diabo, deixando o galinheiro sem vigia enquanto custeava sua fé nas mais ou menos quatro horas que levava entre ir e vir da missa.

Sentia falto do cachorro.

As crianças sempre quiseram um cachorro, e ele nunca as negara nada. Claro que não iria comprar um daqueles filhotes de raça que só comem ração cara, e custam uma nota preta. Não, esse tipo não serviria para o serviço. E essa era uma regra que todos entendiam e cumpriam naquela família: todos tinham tudo o que precisavam para viver, às vezes um pouco mais, até. Às vezes, um 
pouco mesmo também. Mas todos, todos mesmo, tinham funções e tarefas a cumprir, e os filhos sabiam que com o cachorro não seria diferente. 

Conseguiu de um amigo na venda da cidade um filhote que, segundo o dono, era meio vira-latas, meio alguma raça boa de caça, perdigueiro ou algo assim. Sendo metade de cada, seria, lhe garantiu, um cão de guarda danado de bom. E ele acreditou. De graça, só se o bicho não latisse para não aceitá-lo. E era bonitinho, o bichinho, tinha que reconhecer. Teve que dar o braço a torcer.

O pobre animal foi o primeiro sinal de que as coisas não iam bem. Ele havia feito a casa de cachorro próxima ao galinheiro, bem encostado no limite da propriedade, entre o início das árvores e o cercado coberto das aves. Ele achava que ali seria o local perfeito para o cão estar, dia e noite, caso algum animal selvagem viesse de dentro da floresta e para lá voltasse levando consigo alguma de suas galinhas.

Sim, um cachorro esperto na ponta de uma corrente longa poderia espantar um pequeno predador e trazer um pouco mais de tranquilidade. Deveria, pelo menos. Mas se ele agora estava em casa, no domingo de manhã, calçando suas botinas e com a espingarda – que passara a maior parte da vida atrás do guarda-roupas do quarto do casal – pendurada no ombro e carregada, Santa Mãe, tranquilidade era a única coisa que ele não tinha naquele momento.

Ele entrou na mata seguindo as pegadas.

Antes do cachorro, vez ou outra alguma galinha desaparecia. Ele quase não sentia a falta. Era normal uma telha soltar ou uma tábua despregar com o tempo, e alguma ave encontrar a saída do cativeiro. Algumas vezes ele até as soltava e as deixava ciscando, tratando-as como seu pai fizera com as dele em seu tempo, e ao recolhê-las no fim do dia, também não era tão raro que alguma estivesse faltando.

Quando era filhote, as crianças adoravam o cachorrinho, e volta e meia deixavam que ele dormisse dentro de casa. Quase nunca o acorrentavam, e em algumas noites, quando barulhos estranhos chegavam até a casa, vindos do interior obscuro e inexplorado da floresta, o filhote amanhecia encolhido no tapete de entrada, escorado contra a porta arranhada por suas próprias e pequenas patas.

Depois que cresceu - e cresceu bastante, mais do que todos esperavam - ficou mais estabanado, e não cabia mais dentro de casa. Então o interesse das crianças acabou, e só ele dava atenção para o cão. Até tinha conseguido ensiná-lo a pegar gravetos, coisa que parecia adorar tanto quanto adorava comer as sobras da cozinha.

Realmente, sentia falta daquele cachorro.

As penas soltas terminavam antes das árvores começarem. Já as manchas de sangue continuavam, adentrando a nata. Não era nada absurdo como naqueles filmes que os jovens gostavam de assistir tarde da noite, onde parecia que se podia pintar uma casa inteira por dentro e por fora com o sangue de uma única pessoa, tamanha era a quantidade exagerada. Não, ali as manchas de sangue eram discretas e espaçadas. Pequenas gotas que a ave deixou escapar pelos ferimentos enquanto era carregada na mandíbula de algum animal.

Não. Não de algum animal. De alguém.

Ele estacou. O solo fofo da mata era coberto por um tapete de folhas mortas, que era sempre úmido. O sol fazia o possível para alcançar e secar o solo, mas as árvores maiores, com suas copas frondosas, dificultavam muito sua intenção. E o solo permanecia quase sempre, e em quase todos os lugares, fofo e úmido.

Ele pôde ver as folhas, parcialmente apodrecidas do chão, reviradas em alguns pontos. Seu pai, quando era jovem, lhe contava histórias do trabalho que tinha quando mais novo, recuperando gado e cavalos roubados. Foi o primeiro contato que teve com a velha espingarda, e, como seu pai não aceitava que ninguém sequer pudesse pensar que ele mentia, levava-o para caçar e lhe ensinava alguns macetes para rastrear animais e ladrões.

Uma lembrança tomou sua mente. Quando se teve um professor rude e eficiente como seu pai, era difícil esquecer o aprendizado. A principio percebeu o que pareciam rastros normais: um par de pegadas vindo para sua propriedade e outro indo para a mata. Com isso teve certeza de que não era um animal selvagem que lhe causara tanto prejuízo, mas sim um ladrão. A certeza vinda com as pegadas encontradas começou a encher-lhe de ódio, pois também havia aprendido com o pai que não há nada pior nesse mundo do que os ladrões. Mas, o sentimento destrutivo foi contido quando a velha habilidade de rastreamento guiou seus olhos para um pequeno detalhe.

Antes de esse ladrão aparecer, ele contava cerca de 50 galinhas vistosas. Elas faziam ninhos por toda a propriedade, e ele recolhia os ovos. Não estava nadando de braçada, como se dizia, mas era uma quantidade boa demais para suprir as necessidades. Não fosse esse bandidinho começar a tirar-lhe duas, até três galinhas por semana, ele até que não se preocuparia tanto.

As pegadas que vinham da floresta, em direção a sua casa estavam mais fundas do que as que voltavam.

Geralmente, seu pai lhe disse, o ladrão vem leve e volta pesado. Portanto, a profundidade das pegadas, que para um observador desatento não teria a menor importância ou diferença, para ele causava inquietação e estranheza. O ladrão veio com algo mais pesado do que as galinhas que levou.

Voltou em disparada para casa.

Nele se misturavam curiosidade, medo e até certo orgulho. Havia descoberto algo importante, mesmo não sabendo bem do que se tratava. Procurou feito louco no terreiro, em volta e abaixo da casa, sobre o telhado e até no galinheiro. Não descobriu nada. Seja lá o que o ladrão estivesse tramando, ele iria descobrir.

Havia desistido de procurar o tal peso que o ladrão trouxe da floresta e já se encaminhava para entrar novamente na mata e seguir o rastro enquanto as nuvens não desabassem em chuva, quando se deparou com a casinha do cachorro. O ódio que sentiu anteriormente voltou a acometer-lhe, e dessa vez nada o conteve. Retirou do embornal e pequena meiota de aguardente, puxou a rolha e deu um longo gole. O calor da bebida desceu-lhe pela goela e aqueceu-lhe o bucho, como se costuma dizer, e seus lábios se apertaram com força. Vingaria seu orgulho ferido, suas galinhas mortas e seu cachorro desaparecido.
Ele ficou encucado. Nada havia que pudesse ter sido trazido pelo bandido em sua propriedade. Não se sentia seguro, e, como provedor de uma família, se sentia-se assim, então sua família também se sentiria. Não. Na verdade ficariam apavorados.

Tomou a decisão de ir atrás da raiz do problema. Independente do que quer que estivesse sendo tramado, encurralar o ladrão e trazê-lo a justiça findaria seus problemas. Esse pensamento se fixou em sua cabeça e impulsionou seus passos, que apressados deixaram o terreiro para, enfim, adentrar a mata a procura de sua preza.

Havia percorrido cerca de três quilômetros antes de a fome o lembrar da hora avançada, não sem reparar nas grandes e frondosas árvores da mata virgem, apesar da concentração que tinha em seguir os rastros. As árvores que se destacavam pelo tamanho e altura eram ótimos pontos de referência, e ele não queria se perder, além de possuírem rara beleza. Em um domingo normal, já estaria perto do fogão apressando gentilmente a mulher para que terminasse a refeição, para que todos comessem e, em seguida, sossegassem a casa com a sesta, de que tanto gostava. Mas ali, no meio daquele ambiente totalmente novo, por mais similar que pudesse parecer com os lugares onde esteve na infância com o senhor seu pai durante as caçadas, teria que se contentar com a merenda que trazia no embornal. Pão, queijo, carne de sol e água. Era suficiente.

Em um determinado ponto – ele não sabia dizer exatamente qual – passou a seguir apenas um par de pegadas. Aquele lugar possuía um clima determinado. Era sem dúvida um lugar maravilhoso para se passar o fim de semana, com o sol forte e as chuvaradas robustas, mas, para uma caminhada por uma picada dentro do matagal, o clima quente e úmido era de matar.

As marcas dos pés descalços que rastreava seguiam em direção contrária a que ele ia, no momento. Estava certo de que chegaria, uma hora ou outra no esconderijo do bandido, de onde ele partira para pilhar seus bens, embora, sem outro par para comparação, não saberia dizer se carregava ou não algo pesado quando saiu de sua toca. Pela profundidade, ainda achava que sim.

O suor ensopava sua roupa, e ele aprendera também muito cedo que o sol castiga, mas você só perde pra ele se não beber água. E havia, logo adiante, um pequeno riacho. Sabia disso tanto por já poder ouvir, mesmo que bem distante, o barulho da água correndo, mas também porque esse riacho nascia bem a cima da estrada da venda e adentrava na mata logo antes da entrada para a sua propriedade. Uma ponte de madeira, velha como o tempo, foi construída para que os pequenos proprietários pudessem economizar um pouco os passos quando fossem comprar seus mantimentos no único estabelecimento comercial que havia por aquelas bandas, e ainda estava lá, rangendo reclamações sempre que alguma carroça ou cavaleiro passava por ela.

Bebeu o máximo que pode do cantil. Poderia enchê-lo quando chegasse ao riacho.

Havia uma pequena depressão cavada nas pedras por onde o córrego corria. Não era muito profunda, embora ele soubesse que, em um mês de muitas chuvas, a água poderia subir até onde ele estava, sobre a margem. Barrancos de cerca de dois metros flanqueavam o fio d’água que descia livremente sobre as rochas. Como, pelo menos naquele ponto, o relevo não era muito acidentado, ele pôde ver, ao descer pela encosta, alguns bolsões que se formavam, contendo água cristalina e uma diversidade de seres aquáticos.

Enquanto enchia seu cantil com a água pura teve tempo de mais um devaneio, curto, até, mas que sempre lhe acometia quando a natureza, sem qualquer intervenção humana, lhe fornecia o que necessitava. Não conseguia entender, de forma alguma, como as pessoas na cidade podiam despejar seus dejetos nos rios, e recolher água desse mesmo rio para suas tarefas diárias. E ainda por cima, gastavam recursos e dinheiro para tornar a água que contaminavam, boa novamente. Quando fez a fossa que utilizavam atualmente em casa, teve que cavar cerca de nove metros, e como não encontrou água, fez ali a casinha, como seus filhos chamavam. O pessoal mais estudado disse que isso era errado, e falavam de boca cheia que o certo seria encanar o esgoto, que isso era mais higiênico e não agrediria um possível lençol freático, como eles chamaram. A discussão sempre terminava quando ele punha seu pensamento em pauta: como, mesmo com tanto estudo, eles podiam se preocupar mais com a água debaixo da terra que não podiam ver e que nem estivesse lá, e achar que encanar o esgoto e despejar no rio aberto que todos podiam ver poderia ser mais higiênico? Ninguém, nunca, teve resposta convincente para isso.

Ao chegar nessa conclusão, deixou-se avaliar sua situação. Estava em uma sinuca de bico agora. Voltar não traria resultado nenhum, mas não podia simplesmente ir em frente. Trilhas que chegavam a filetes de água como esse raramente eram reencontradas na margem oposta. Se fosse algum animal, não seria tão difícil, mas um homem certamente dificultaria as coisas. E sua família, com certeza, já teria chegado em casa da missa, e ele não queria voltar para casa sem uma boa explicação para sua esposa e uma boa história para contar aos filhos.

Enquanto pensava prematuramente na volta para casa, bebendo da água fresca do riacho, divagou olhando o entorno e não se deu conta instantaneamente do que era aquilo no ponto em que seus olhos haviam pousado. Só se deu conta realmente do que era quando aquilo se moveu.

Depois, com calma, por mais que quisesse esquecer aquele momento – e todos os outros que se seguiram até que conseguisse chegar em casa – pode refletir que o que vira de verdade enquanto procurava algum sinal na margem oposta que lhe permitisse continuar a trilha, fora algo sob uma grande moita fechada. Um pequeno pé. Não um pé, ele se lembrava, um calcanhar. Ele ficou paradinho como mosca na bosta, como se costuma dizer, e, como se o dono daquele pé soubesse o momento exato em que ele entendera o que estava vendo, se virou e saiu em disparada. De costas.

Ele não conseguira ver nada além daquele pé. A figura parecia estar de costas para ele por todo o tempo em que ficou no leito do pequeno riacho, e quando ele finalmente a viu virou-se e correu. O susto foi grande, ele se lembrava, e os cabelos do seu braço ainda se arrepiavam quando contava a história, mesmo omitindo a parte da sequência em que, tamanho o susto, caía para trás de bunda no chão.

Recompondo-se, subiu a margem em direção ao fugitivo, agarrando-se em raízes sem se preocupar com as roupas ensopadas ou com a lama que grudava em suas mãos e sapatos. Podia ouvir o som da corrida do outro, podia ver seu rastro e, enquanto ele também saia em disparada, puxava das costas a espingarda carregada.

Ele correu por muito tempo. Tinha certeza disso pela dor aguda bem embaixo das costelas, e pela queimação em seus pulmões toda vez que puxava o ar. Não queria parar a perseguição, mas involuntariamente diminuiu o ritmo, passando a prestar mais atenção na trilha.

Mas que trilha?

Não havia corrido por trilha alguma. Sua presa o levou por entre a mata fechada, sem qualquer indício de que por ali já havia passado alguém alguma vez antes. A hora já avançava, e, mesmo não sendo ainda noite, o entardecer em um lugar daquele podia escurecer tanto o caminho que o deixaria completamente perdido. Já não podia ouvir a corrida da pessoa que tinha visto, por isso, e por não haver nenhuma certeza de que aquela pessoa estivesse seguindo para algum lugar em que pudesse ser encurralada, decidiu apenas voltar, devagar, seguindo atentamente os próprios rastros.

Não foi tarefa fácil conseguir encontrar o riacho. Quando finalmente o fez, já era noite. Não podia ver um palmo na frente do nariz, e como não esperava permanecer tanto tempo fora de casa, não havia levado lamparina ou vela. Não esperava se perder, isso era certo. Enquanto ainda havia luz, retornou por aonde veio, bem abaixado, tentando seguir as próprias pegadas. Fez um progresso lento, e demorou ainda mais quando o sol não mais tinha brilho para alcançar o interior da floresta.
Ele via as pegadas. Não as dele, com marcas da sola da botina, mas as descalças e pequenas pegadas que o intrigavam. O pé que vira pertencia a alguém – alguma coisa – que era bastante singular. No início da perseguição parecia correr de costas, mas antes do sol se por ao todo ele já tinha a certeza de que em vários pontos elas mudavam de direção e mudavam de sentido, como se corresse hora de frente, hora de costas.

Isso foi um nó cego em seus pensamentos, e por pouco ele não entrou em desespero. Havia bastante coragem nele, mas o que realmente o impediu de perecer perdido na mata fechada foi o medo. Enquanto tentava entender se as pegadas que tentava iluminar com o palito de fósforo no solo o estavam ajudando a encontrar o caminho de volta, olhou de esguelha para trás, por onde achava que o indivíduo fujão havia corrido, e viu seus olhos. Muito, muito próximos. Duas pequenas bolébas vermelhas, como se refletissem o brilho de uma grande fogueira.

Sem pensar, apontou o cano da arma em direção àqueles olhos terríveis e puxou o gatilho. Não ficou para ver se tinha acertado, correu em disparada para frente, sem se preocupar com a trilha. Queria abrir distancia e fugir. Queria chegar a casa e se abrigar. Queria não ter corrido de forma tão desembestada atrás de algo que não poderia ser normal. Queria ter ido à igreja e rezado um pouco mais. Queria continuar vivo.

Ele caiu pelo barranco e acertou o rosto em uma pedra pontuda na margem do riacho. Não ligou para a dor, nem para o sangue. Reconheceu o lugar e sem demora encontrou a trilha que ali havia e correu um pouco mais. Não olhou para trás novamente.

Quando ele chegou a casa, guiado os últimos metros pelas luzes provenientes do lampião que adornava a varanda de tábuas, sua mulher o esperava na porta. Ela perdeu a raiva que sentia por não saber onde ele havia se metido no momento em que viu sua aparência sofrida e o medo estampado em seu rosto. Ele entrou correndo, arrastando-a para dentro consigo e fechando a porta em seguida. Naquela noite não saiu nem para se banhar e limpar suor, lama ou sangue, e também não deixou que ninguém da casa o fizesse. Procurou se acalmar, e até manteve a compostura diante dos filhos, que aguardaram obedientes, enquanto ele tomava uma caneca de chá de camomila que sua esposa preparou, para ouvir a história.


Ele contou o que tinha feito e o que havia acontecido. Fingiu ter cumprido sua tarefa, trocando a verdade por uma mentira que faria seus filhos dormirem em paz. Disse que havia seguido um animal, e quando seus filhos perguntaram sobre o barulho do disparo, disse que havia atirado na onça que roubava suas galinhas. As crianças dormiram com a certeza de que seu pai era um grande homem e nada temia, mas para sua esposa contou a verdade quando estavam os dois a sós. Ela não custou a acreditar. Tinha também as próprias histórias, contadas por seu próprio pai, sobre a criatura de pés virados com olhos vermelhos como brasas que se alimentava das pessoas que se perdiam na floresta.


Ele não dormiu aquela noite.

Ficou à janela, sentado em um banco simples e desconfortável porque não teve coragem de sair novamente de casa, nem para ir à varanda andando alguns passos para pegar sua cadeira preferida, com uma manta sobre os ombros ainda sujos, dando pequenas goladas na água com açúcar que descansava na mesinha ao lado do velho rádio a pilha quando sua mulher lhe pedia calma, olhando intensamente para as árvores nos limites de sua propriedade, acalentadas pela escuridão profunda e bucólica, naquelas bandas bem no interior da mais humilde zona rural de Colatina.

Depois disso, foi se aquietando aos poucos. O tempo foi passando, e se ele não tomasse providências, o acontecimento cairia no esquecimento, e, como ocorre com as lembranças antigas, se fragmentaria, embaçaria, e o que sobrasse da lembrança ficaria guardado em um canto escuro e nublado da memória.
Quando ele, mais ou menos uma semana depois, se recompôs por completo, decidiu não esquecer.


Faria disso uma lição. E não era assim que tinha de ser?

Ele não voltou a pegar sua velha espingarda por um longo tempo. Não comprou outro cachorro, e nem sequer cercou seu quintal. Passou, ao invés disso, a sair sozinho na calada da noite, uma vez por semana. Contava aos filhos – aproveitando boa parte da versão que sua própria mulher lhe contara por ouvir de sua avó – a história de um ser folclórico que vivia no interior da mata, que tinha os pés virados e os olhos vermelhos como brasas. Dizia às crianças que aquela criatura apareceria caso fizessem estripulias ou fossem por demais desobedientes, e sua esposa confirmava tudo balançando a cabeça levemente para cima e para baixo.
Ele investiu mais tempo e o pouco dinheiro que tinha, aumentando a quantidade de aves no galinheiro, mas não expandiu as construções em direção à floresta, não senhor. No rumo da mata, levava apenas uma ave gorda, sempre que dava essas saidinhas, pronta para o abate. Não havia mais latidos de cachorro na escuridão. E, quem sabe, nada mais de saques no galinheiro.

Ele, agora, daria ainda muito mais valor ao que tinha, e dividiria com os outros – com aquilo – o pouco que pudesse, pois, se tivesse se perdido, não teria, realmente, mais nada.