“Pizzicato” – um beliscão na alma
Marilena
Soneghet
Embora já se insinuasse o
inverno, e principalmente à noite o frio imperasse, a claridade do sol da tarde
projetava no assoalho o formato das janelas. Cortinas de “voile” - algumas
presas num dos cantos -, esvoaçavam ao sopro da leve aragem. Na grande sala,
ainda vazia, imperava o silencioso eco de todos os sons que a impregnavam -
aquele clima perene que a música deixa no ar. Ali era a sua morada.
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Marieleba |
Chegáramos mais cedo para o ensaio do coral e da
orquestra - faríamos parte da grande abertura no Festival de Campos do Jordão.
Minha amiga como violinista; eu, como coralista, meso-soprano (embora
preferisse o contralto) - apenas uma pequena voz entre muitas.
Minha amiga principiara a tocar uma peça ligeira
para se aquecer. Fechei os olhos e deixei-me levar. Havia um trecho onde
os soluços de um pizzicato beliscou-me os sentidos; despertou-me uma emoção
nostálgica... qual indefinida saudade. A saudade infinita que o futuro me
reservaria - já latente no passado (pressenti) - (são paralelos e coexistentes
os tempos do coração).
Aos poucos foram chegando os outros integrantes:
músicos e coralistas. Vozes, risos, arrastar de cadeiras... as calorosas
saudações dos reencontros. Os músicos abriam seus estojos: celos, rabecas,
contrabaixos surgiam. Aqui e ali, vibravam toques esparsos.
A polifonia confusa provocada pela afinação dos
diversos instrumentos sempre me sensibiliza. Presa a respiração, permaneci
suspensa, aurindo sons desconexos – graves, agudos, finíssimos, fanhosos,
roucos, sibilantes. Um glissando aqui, uma escala rápida acolá, um acorde
preciso, onde se intuía os anos de estudo, de dedicação, de apuração do ouvido,
de entrega total à alma da música.
Até hoje, quando vou a um concerto, gosto de chegar
bem cedo para impregnar-me desse prelúdio meio caótico – o da afinação dos
instrumentos - que antecede a apresentação. São preparatórios para a solene
abertura, quando o maestro, após cumprimentar o público, volta-se para a
orquestra, ergue a batuta e... cria-se o suspense! Durante infinitos segundos
o tempo parece parar. Profundo silêncio envolve a sala de concertos. Ninguém
ousa sequer respirar - até que... a um primeiro movimento da batuta jorra a
música com toda sua harmonia e beleza. Às vezes, a entrada triunfal deflagra
uma explosão de sons em uníssono; outras vezes insinua-se, em “pianíssimo”,
qual leve cascata em brilho de água, gorgeio de pássaros, de cativante
delicadeza.
A música tem o dom de nos penetrar por todos os
poros. E não apenas a das orquestras, com sua multiplicidade de recursos e instrumentos.
Um violão dedilhado baixinho, o som distante de uma flauta, o fluir das teclas
de um piano solitário ou modulações de uma voz cristalina... que poder têm!
Mesmo a música simples, do povo, ou vozes de crianças a cantar cirandas...
sempre nos tocam e despertam algo adormecido em nós. Extremamente vulnerável à
música, deixo-me ir em suas asas aos confins desse universo sonoro.
Toda emoção é um presente divino; acontece nos momentos mais inusitados. As que
vivo e vivi, guardo em mim – “nos secretos escaninhos/ que o seu poder só sei
eu” – não como no poema de Almeida Garret, quais “venenos daninhos” e, sim,
como tesouros a serem resgatados com todo seu encanto regenerador.
Sim; se
minha alma soluça em pizzicato – como a alma de um violino – se as cordas do
meu ser plangem... basta-me evocar vivências, saudades, lembranças, sensações
que permaneceram latentes nos esconsos do meu ser. Reativadas, elas reacendem
minha chama interior. São meu arsenal ‘secreto de vida!
Postado
há 20th October 2014 por Marilena
Soneghet, no seu blog "reminiscencias"