terça-feira, 14 de janeiro de 2020

PIZZICATO


              “Pizzicato” – um beliscão na alma

                                                                                 Marilena Soneghet
   Embora já se insinuasse o inverno, e principalmente à noite o frio imperasse, a claridade do sol da tarde projetava no assoalho o formato das janelas. Cortinas de “voile” - algumas presas num dos cantos -, esvoaçavam ao sopro da leve aragem. Na grande sala, ainda vazia, imperava o silencioso eco de todos os sons que a impregnavam - aquele clima perene que a música deixa no ar. Ali era a sua morada.
Marieleba

Chegáramos mais cedo para o ensaio do coral e da orquestra - faríamos parte da grande abertura no Festival de Campos do Jordão. Minha amiga como violinista; eu, como coralista, meso-soprano (embora preferisse o contralto) - apenas uma pequena voz entre muitas.

Minha amiga principiara a tocar uma peça ligeira para se aquecer. Fechei os olhos e deixei-me levar.  Havia um trecho onde os soluços de um pizzicato beliscou-me os sentidos; despertou-me uma emoção nostálgica... qual indefinida saudade. A saudade infinita que o futuro me reservaria - já latente no passado (pressenti) - (são paralelos e coexistentes os tempos do coração).

Aos poucos foram chegando os outros integrantes: músicos e coralistas. Vozes, risos, arrastar de cadeiras... as calorosas saudações dos reencontros. Os músicos abriam seus estojos: celos, rabecas, contrabaixos surgiam. Aqui e ali, vibravam toques esparsos.

A polifonia confusa provocada pela afinação dos diversos instrumentos sempre me sensibiliza. Presa a respiração, permaneci suspensa, aurindo sons desconexos – graves, agudos, finíssimos, fanhosos, roucos, sibilantes. Um glissando aqui, uma escala rápida acolá, um acorde preciso, onde se intuía os anos de estudo, de dedicação, de apuração do ouvido, de entrega total à alma da música.

Até hoje, quando vou a um concerto, gosto de chegar bem cedo para impregnar-me desse prelúdio meio caótico – o da afinação dos instrumentos - que antecede a apresentação. São preparatórios para a solene abertura, quando o maestro, após cumprimentar o público, volta-se para a orquestra, ergue a batuta e...  cria-se o suspense! Durante infinitos segundos o tempo parece parar. Profundo silêncio envolve a sala de concertos. Ninguém ousa sequer respirar - até que... a um primeiro movimento da batuta jorra a música com toda sua harmonia e beleza. Às vezes, a entrada triunfal deflagra uma explosão de sons em uníssono; outras vezes insinua-se, em “pianíssimo”, qual leve cascata em brilho de água, gorgeio de pássaros, de cativante delicadeza.
A música tem o dom de nos penetrar por todos os poros. E não apenas a das orquestras, com sua multiplicidade de recursos e instrumentos. Um violão dedilhado baixinho, o som distante de uma flauta, o fluir das teclas de um piano solitário ou modulações de uma voz cristalina... que poder têm! Mesmo a música simples, do povo, ou vozes de crianças a cantar cirandas... sempre nos tocam e despertam algo adormecido em nós. Extremamente vulnerável à música, deixo-me ir em suas asas aos confins desse universo sonoro.

          Toda emoção é um presente divino; acontece nos momentos mais inusitados. As que vivo e vivi, guardo em mim – “nos secretos escaninhos/ que o seu poder só sei eu” – não como no poema de Almeida Garret, quais “venenos daninhos” e, sim, como tesouros a serem resgatados com todo seu encanto regenerador.


Sim; se minha alma soluça em pizzicato – como a alma de um violino – se as cordas do meu ser plangem... basta-me evocar vivências, saudades, lembranças, sensações que permaneceram latentes nos esconsos do meu ser. Reativadas, elas reacendem minha chama interior. São meu arsenal ‘secreto de vida!



Postado há 20th October 2014 por Marilena Soneghet, no seu blog  "reminiscencias"