terça-feira, 27 de junho de 2017

MATE-ME, MAS NÃO ME BATA

Hoje, por acaso conversei com três pessoas que integram a "PASTORAL DE RUA", 
lembrei-me deste artigo, escrito em 2002, resolvi republicá-lo.

Durante todos estes anos em que trabalho com
os mais pobres, tenho entendido sempre
mais que o pior dos males, não é a lepra,
nem a tuberculose. É a sensação de não
ser querido, de não ser amado.

Está na rua “tem sete natais”, “bandidos” o expulsaram de sua casa,  não pretende mais voltar. Não tem segurança. Dorme em abrigos improvisados, quase sempre depois das quatro da manhã, porque até esta hora, deve vigiar “suas coisinhas” para ninguém roubar.

Vive de artesanato improvisado, tem os instrumentos mínimos de que precisa para confeccioná-los. É do que vive, sem compromisso com quem quer que seja.  “O filhinho que o Juiz lhe deu, criou até  “tomar prumo”, até assim... uns sete para oito anos e agora deixa com sua mãe lá em...”

Num “ontem”, nove horas da noite,  hora da “janta”  estava tomando um “leitinho e comendo um pãozinho”, sentado na calçada, com a mala de “suas coisinhas” do lado.

Ali perto, havia uma pessoa olhando uma vitrine de loja...   pelo aspecto,  tal qual canta  José Geraldo, alguém achou que  “devia estar querendo roubar”(?). Chamou a polícia que apareceu rapidinho, foi-me contando.

Um policial salta da viatura, dirige-se ao Tal e lhe dá um sonoro tapa no rosto. Em seguida “esquece do rapaz” dirige-se ao Zé  e com um  pau de mais ou menos um metro lhe dá dois golpes.

É o que se chama de adrenalina pura. Ou a pobreza em ninguém chega a ser tanta ou  capaz de negar-lhe o conceito ou o valor da própria dignidade?  E os lábios que sorviam um leitinho  (única coisa que podia comprar, pois, “nestes dias não estou vendendo nada”) se desprendem,  dando asas a indignação que explode:  “seu canalha, vagabundo, etc, etc, etc...  Mate-me, mas não me bata, eu não fiz nada!!!”

-          Não fez?  Retruca o agressor. Que mala é esta ai, cadê a maconha”? 
       
E começa a revirar tudo, espalhando pulseiras, cordões,  miçangas e contas... pela calçada e pela rua. A cena é dantesca para quem presa tanto a própria obra, tudo que tem, “as suas coisinhas” tão caras a ponto de deixar de dormir só para vigiá-las.

Afasta-se, não pode ver  “a devastação”. Sem rumo,  por onde passa se criam tangentes de uma circunferência. Um raio invisível,  inquebrantável, une-o ao lugar onde as “coisinhas” ficaram. 
Mais tarde, não queria, mas os amigos insistiam: “vai, vai, vai buscar suas coisas”. E foi. Foi também à Superintendência e aconselhado, “com um jeito delicado” a deixar para lá...

Há reparação para uma afronta desse porte? Um homem foi ferido no que tem de mais sagrado, sua alma! Aquelas duas “cacetadas” não doeram nas costas ou no braço esquerdo, onde ainda restava um hematoma, quando o vi, rasgaram-lhe as entranhas e lhe acrescentaram a descrença e a desconfiança que nutre pelos homens.

Um processo penal punirá o agressor? Absolutamente, não. Talvez uma indenização lhe suavizasse a mágoa como acontece nos Juizados Especiais. Já vi.  As vítimas saem de lá mais leves.

Pena que não se aplica no juízo militar.

Praza aos céus que o quanto antes esses cidadãos entendam que os demais são tão cidadãos quanto eles,  que lhes compete proteger, jamais, maltratar quem quer que seja.

Deus não gosta! mas não goooooooosta mesmo!!!

Marlusse Pestana Daher
Publicado em um jornal em 18/02/2002