Hoje, por acaso conversei com três pessoas que integram a "PASTORAL DE RUA",
lembrei-me deste artigo, escrito em 2002, resolvi republicá-lo.
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Durante todos estes anos em que trabalho com os mais pobres, tenho entendido sempre mais que o pior dos males, não é a lepra, nem a tuberculose. É a sensação de não ser querido, de não ser amado. |
Está
na rua “tem sete natais”, “bandidos” o expulsaram de sua casa, não pretende mais voltar. Não tem segurança.
Dorme em abrigos improvisados, quase sempre depois das quatro da manhã, porque
até esta hora, deve vigiar “suas coisinhas” para ninguém roubar.
Vive de artesanato improvisado, tem
os instrumentos mínimos de que precisa para confeccioná-los. É do que vive, sem
compromisso com quem quer que seja. “O
filhinho que o Juiz lhe deu, criou até
“tomar prumo”, até assim... uns sete para oito anos e agora deixa com
sua mãe lá em...”
Num “ontem”, nove horas da
noite, hora da “janta” estava tomando um “leitinho e comendo um
pãozinho”, sentado na calçada, com a mala de “suas coisinhas” do lado.
Ali perto, havia uma pessoa olhando
uma vitrine de loja... pelo
aspecto, tal qual canta José Geraldo, alguém achou que “devia estar querendo roubar”(?). Chamou a
polícia que apareceu rapidinho, foi-me contando.
Um policial salta da viatura,
dirige-se ao Tal e lhe dá um sonoro tapa no rosto. Em seguida “esquece do
rapaz” dirige-se ao Zé e com um pau de mais ou menos um metro lhe dá dois
golpes.
É o que se chama de adrenalina pura.
Ou a pobreza em ninguém chega a ser tanta ou
capaz de negar-lhe o conceito ou o valor da própria dignidade? E os lábios que sorviam um leitinho (única coisa que podia comprar, pois, “nestes
dias não estou vendendo nada”) se desprendem,
dando asas a indignação que explode:
“seu canalha, vagabundo, etc, etc, etc... Mate-me, mas não me bata, eu não fiz nada!!!”
-
Não
fez? Retruca o agressor. Que mala é esta
ai, cadê a maconha”?
E
começa a revirar tudo, espalhando pulseiras, cordões, miçangas e contas... pela calçada e pela rua.
A cena é dantesca para quem presa tanto a própria obra, tudo que tem, “as suas
coisinhas” tão caras a ponto de deixar de dormir só para vigiá-las.
Afasta-se,
não pode ver “a devastação”. Sem
rumo, por onde passa se criam tangentes
de uma circunferência. Um raio invisível,
inquebrantável, une-o ao lugar onde as “coisinhas” ficaram.
Mais
tarde, não queria, mas os amigos insistiam: “vai, vai, vai buscar suas coisas”.
E foi. Foi também à Superintendência e aconselhado, “com um jeito delicado” a deixar
para lá...
Há
reparação para uma afronta desse porte? Um homem foi ferido no que tem de mais
sagrado, sua alma! Aquelas duas “cacetadas” não doeram nas costas ou no braço
esquerdo, onde ainda restava um hematoma, quando o vi, rasgaram-lhe as
entranhas e lhe acrescentaram a descrença e a desconfiança que nutre pelos
homens.
Um
processo penal punirá o agressor? Absolutamente, não. Talvez uma indenização
lhe suavizasse a mágoa como acontece nos Juizados Especiais. Já vi. As vítimas saem de lá mais leves.
Pena
que não se aplica no juízo militar.
Praza
aos céus que o quanto antes esses cidadãos entendam que os demais são tão
cidadãos quanto eles, que lhes compete
proteger, jamais, maltratar quem quer que seja.
Deus
não gosta! mas não goooooooosta mesmo!!!
Marlusse
Pestana Daher
Publicado em um jornal em 18/02/2002