"Felizes
os que são pobres no espírito, porque deles é o reino dos céus"
(Mateus
5,3).
Todas as
pessoas são chamadas à santidade, a fim de serem bem-aventuradas. "Sede
santos, porque eu, Javé vosso Deus, sou santo" (Levítico 19,2). A
comunidade de Mateus faria uma releitura desse chamado da seguinte forma:
"Sede perfeitos, como o Pai celeste é perfeito" (Mateus 5,48).
Coerente com sua experiência com o Deus da misericórdia, a comunidade de Lucas
formula assim o mesmo convite: "Sede misericordiosos como vosso Pai é
misericordioso" (Lucas 6,36).

Quando
Mateus apresenta Jesus fazendo cinco grandes discursos (Mateus 5-7; 10;
13,1-52; 18; 24-25), sua intenção é apresentá-lo como o novo Moisés, a quem
eram atribuídos os cinco livros da Lei, o Pentateuco. A Lei era considerada a
expressão da vontade de Deus. No tempo de Jesus, muitos fariseus estavam
preocupados em viver a Lei em todos os seus pormenores. Jesus, porém, vive e
anuncia essa vontade de Deus indo além da letra da Lei. Diz que, mais que a
letra, é o espírito da Lei que interessa. Disse ainda que o espírito da Lei
consiste na vivência do amor a Deus e ao próximo como a si mesmo (Mateus
22,34-40). Assim, o amor passa a ser a orientação fundamental para o nosso agir
(cf. Mateus 12,1-8; 23). Mateus chama essa vontade de Deus de justiça do Reino
(cf. Mateus 6,33). Se Moisés era o antigo mestre da Lei, Jesus é o novo mestre
da justiça a nos ensinar o caminho de Deus, o caminho da santidade no amor.
O primeiro
grande ensinamento do mestre da justiça, o Sermão da Montanha (Mateus 5-7), é
um conjunto de orientações para a boa convivência na comunidade. Tal como
Moisés escrevera as palavras da Lei estando sobre um monte, Jesus dá as novas
orientações também numa montanha (Êxodo 34,28; Mateus 5,1).
As bem-aventuranças
(Mateus 5,1-12) são a porta de entrada ao Sermão da Montanha (Mateus 5-7). São
um programa de vida para trazer felicidade plena a quem adere à Boa-Nova de
Jesus.
A justiça do
Reino dos Céus (= de Deus), isto é, a vontade de Deus, é o carro-chefe das
bem-aventuranças. O Reino é o projeto na primeira e na oitava bem-aventurança.
E, no centro, estão a busca da justiça (do projeto do Reino) e a busca da
misericórdia (ter o coração voltado para quem está na miséria). Uma vez
realizada a justiça de Deus, os empobrecidos deixarão de ser oprimidos, pois
haverá partilha e solidariedade. Por isso, Jesus os declara felizes.
A primeira
bem-aventurança é a mais importante. As demais são desdobramentos desta. Os
pobres são aqueles que choram, são os mansos ou humildes (no Salmo 37,11,
texto-base para esta bem-aventurança, são chamados de anawim, isto é, de
pobres), os que têm fome, os misericordiosos, os puros de coração, os que
promovem a paz e as pessoas perseguidas por causa da justiça. E as dádivas para
os empobrecidos são: o Reino de Deus, o conforto, a terra partilhada, a
fartura, a misericórdia, a contemplação de Deus e a filiação divina (agir à
imagem e semelhança de Deus ou ter as mesmas atitudes de Deus).
Porém, ser
pobre não é suficiente. Está claro que os empobrecidos são os preferidos de
Deus, justamente porque ele não pode ver nenhum de seus filhos e nenhuma de
suas filhas passando por necessidades. Ainda mais, quando a pobreza é fruto da
injustiça humana. É interessante notar que esta mesma bem-aventurança, no
Evangelho segundo Lucas, reza assim: "Felizes vós, os pobres, porque vosso
é o Reino de Deus" (Lucas 6,20).
Quando a
comunidade de Mateus acrescentou "no espírito" à primeira
bem-aventurança de Jesus (Mateus 5,3), também estava preocupada com o fato de
que há pobres com coração e mente impregnados com o espírito de rico, buscando
o sentido mais profundo para a vida na riqueza e no poder. Por isso, quis
deixar bem claro para seus destinatários que não basta ser pobre, mas que é
preciso ser "pobre no espírito", isto é, viver de acordo com o
espírito do próprio Deus. É possível que a comunidade de Mateus, ao acrescentar
à parábola do banquete a presença de um homem sem a veste nupcial (Mateus
22,1-14; comparar com Lucas 14,16-24), queira justamente se referir à
necessidade de também ser pobre no espírito, ou seja, livre de tudo que
escraviza. Ser pobre no espírito também é a opção pelo projeto da justiça e da
misericórdia, é viver na total confiança e dependência de Deus, é confiar na
partilha, na vida simples e na fraternidade.
Aliás, são
justamente as pessoas que buscam a felicidade no consumismo, na acumulação e no
individualismo que perseguem aos que lutam pela justiça do Reino, pela paz e
pela partilha. Foi assim que, no passado, os poderosos perseguiram os profetas
(Mateus 5,10-12).
E hoje,
Jesus renova o convite para nós: "Buscai em primeiro lugar o Reino de Deus
e a sua justiça, e todas essas coisas vos serão dadas por acréscimo"
(Mateus 6,33). E o caminho da justiça do Reino, o caminho da santidade está na
prática do espírito da Lei proposto nas orientações fundamentais para a vida, e
que Jesus sintetiza nas bem-aventuranças.