“SENTIR
MARIA”, A IMACULADA
“...encontraste graça diante de Deus” (Lc 1,30)
Certamente, cada “concepção” é um “mistério” de vida sagrada. Cada concepção é “in-maculada” e cada princípio de vida
é santo, desde o “ventre” da mãe.
Hoje a liturgia celebra a festa da Concepção, dia do amor “secreto” de
Joaquim e Ana, dia que marca o princípio do que será o caminho aberto na vida
de Maria, que começa já no “ventre santo” de sua mãe.
Para além da realidade do puro pensamento,
o “dogma da Imaculada” pertence á
esfera do sentimento cristão. Nesse contexto, a comunidade cristã quis
descobrir um “lugar de graça”, uma experiência, uma vida “sem pecado”, e viu
que Maria, a Mãe de Jesus, é também Imaculada.
O “dogma
da Imaculada” não é um dogma que se impõe à razão e que é preciso crer à
força (isso seria imposição doutrinal), mas é o que ilumina e impulsiona o
pensamento e o sentimento dos cristãos. Nesse sentido, um dogma que nos faz “sentir
Maria”. Esse dogma expressa o fato misterioso de que ela foi
transparente ao desejo de Deus, dialogando com Ele em liberdade, fazendo-se mãe
do Filho divino. É um dogma aberto a todos os homens e mulheres que, por sua fé
e seu compromisso, querem superar a trava do pecado, abrindo-se à vida pura da
terra limpa, do amor imaculado, da justiça universal.
“Sentir Maria” é reencontrar em nós mesmos aquilo que diz
sim à vida, quaisquer que sejam as formas que esta vida tomar.
“Sentir Maria” é superar toda expressão de desconfiança, de dúvida, de temor
diante daquilo que a vida vai nos dar para viver.
É assim que se fala
de Imaculada Conceição. O Verbo é
concebido no que há de mais imaculado no ser humano, no que há de mais
completamente silencioso e íntimo. Isto supõe que haja no mais profundo da
pessoa um lugar onde não existe limitação, mas a fonte de onde nasce a vida.
Em todos
nós, algo de bom, de inocente, de imaculado, continua a dizer “sim” ao incompreensível Amor... O ser
humano é “capaz de Deus”. É preciso encontrar, entre nós mesmos, este lugar por
onde entra a vida, este lugar por onde
entra o amor. É uma experiência de silêncio, uma experiência de intimi-dade,
alguma coisa de mais profundo do que aquilo que se chama o pecado original.
Charles Peguy dizia que “Maria é mais jovem que o pecado”. Isto
quer dizer que existe em nós alguma coisa de mais jovem e de mais profundo,
anterior ao pecado, que é a beatitude original.
Falamos demais
sobre o pecado original e muito pouco sobre a beatitude original. Existe em nós uma realidade mais profunda que a nossa
resistência, um sim mais profundo que todos os nossos “nãos”, uma inocência
original que todos os nossos medos e feridas... É preciso encontrar a confiança
original.
Maria é o estado de confiança original. Assim, os Antigos
Padres viam nela um arquétipo da beatitude original, a mulher da pura confiança,
do sim original Àquele que É.
Maria é a nossa verdadeira natureza, é a nossa verdadeira
inocência original, aberta à presença do divino.
Mas Maria não é Imaculada só (e sobretudo) em sua Concepção, senão em sua vida
inteira; Ela se faz Imaculada, em atitude constante de diálogo com Deus
e de abertura (entrega) ao serviço dos outros, por meio de Cristo, seu filho.
Não reservou nada para si, tudo colocou nas mãos de Deus, para serviço e liber-tação
da humanidade. Maria não dialoga com Deus para si mesma, senão em nome de todos
os homens e mulheres e para o bem do mundo inteiro. Rompe assim a cadeia de
mentiras, de egoísmo e de violência que tem suas raízes na origem da
humanidade. Este é um dogma da Igreja que se reconhece em Maria e que quer também
ser “imaculada”,
colocando-se a serviço da obra libertadora de Deus.
Por isso dizemos que Maria é Imaculada com todos, por todos,
para
todos, para “nosso próprio bem e salvação”. Nesse sentido dizemos que ela é
Imaculada como referência única de uma humanidade que também é capaz de escutar
Deus e de responder-lhe; ela é Imaculada porque nos “des-vela” que também nós
podemos romper as amarras que nos desumanizam; ela é Imaculada porque “re-vela”
que o ser humano é “lugar” de abertura a Deus, que é possível viver em
liberdade, dialogando com os outros, a serviço da comunhão e da vida.
Maria é o verdadeiro Templo, é espaço de
presença do Espírito, lugar sagrado onde habita a divindade para, a partir
dela, expandir-se depois a todo o povo. Ela é lugar de plenitude do Espírito,
terra da nova criação, templo do mistério.
Evidentemente, esta presença é dinâmica: o Espírito de Deus está em
Maria para fazê-la mãe, lugar de entrada do Salvador na história.
Ela não é um instrumento mudo, não é um
meio inerte que Deus se limitou a utilizar para que fosse possível a
Encarnação. Maria oferece ao Espírito de Deus sua vida humana para que através
dela o mesmo Filho Eterno possa entrar na história.
Toda envolvida pelo amor divino, Maria soube colocar-se, em total disponibilidade, nas
mãos de Deus, para cumprir sua santa vontade: “Eis a serva do Senhor, faça-me em mim conforme a tua palavra”.
Por isso a “Imaculada
Conceição” é um dogma teologal, ou seja, expressa a certeza de que Deus
quis comunicar-se de maneira transparente com os homens; buscou e encontrou em
Maria uma interlocutora privilegiada, capaz de escutá-lo e responder-lhe, compartilhando
seu mesmo desejo de Vida plena. É um dogma sobre Deus, que não quer o “pecado”
dos homens e mulheres, mas o amor que cria e dá a vida.
Uma tal comunhão com Deus excluía qualquer traço de egoísmo
e de pecado. Só a plenitude da graça (“cheia de graça”) permitiu-lhe ser
totalmente despojada de si para cumprir o projeto de Deus. Daqui brota a fé de
que Maria, mesmo antes de nascer, foi preservada do pecado.
A festa da Imaculada Conceição leva-nos, portanto, a pensar em Maria como
aquela que, movida pela Graça realizou-se como pessoa que
acolhe o desejo de Deus e lhe corresponde com seu mais profundo desejo. Ao encarnar-se
por meio dela, Deus não se impôs a partir de cima ou de fora, mas deseja e pede
sua colaboração; por isso lhe fala e espera sua resposta, como indica o texto
de Lucas, uma cena simbólica que pode apresentar-se como diálogo do consentimento:
Maria respondeu a Deus em gesto de confiança sem fissuras; confiou n’Ele, lhe
deu sua palavra de mulher, pessoa e mãe.
Ambos se uniram para compartilhar uma mesma
aventura de amor e de graça, a história divino/humana do Filho eterno.
Para isso, a liturgia desta festa nos
convida a focar a atenção no momento da Encarnação
de Jesus, como fruto de um profundo diálogo entre Maria e o anjo de Deus. É
no seu diálogo de amor fecundo com Deus que podemos e devemos afirmar que Maria
é Imaculada. Nessa linha, a Igreja pode afirmar que Maria é (e foi se fazendo)
Imaculada ao dialogar com Deus em profundidade pessoal.
Deus mesmo quis conduzi-la desde o momento de sua origem
humana (concepção), como conduz cada homem e cada mulher que nascem neste mundo.
Ali onde um frágil ser humano (uma mulher e não uma deusa), pode escutar Deus
em liberdade e dialogar com Ele em transparência, surge o grande milagre: o
Filho divino já pode existir em nossa terra.
Texto
bíblico: Lc 1,26-30
Na
oração: entoar
um hino de louvor, reconhecendo as “maravilhas” de Deus em sua vida;
dar-se conta das beatitudes
originais presentes no seu interior: compaixão, bondade,
mansidão, busca da justiça e
da paz...