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Bodas de Ouro Vovó Rosinha e vovô Duca |
Foi uma pena que
quando o meu avô Duca - Manoel Martins Pestana - acamado por muitos anos, ainda
vivia, com bom apetite, registre-se, sem perder noite de sono e ainda botando
alguma banca daquelas tipo eu sou o homem da casa, - mesmo
dependendo in totum de todo e
qualquer cuidado, que com uma auxiliar, quando tinha, lhe eram proporcionados
por nossa Verinha, - não tivéssemos um gravador ou mesmo
tivéssemos tido a boa ideia de com lápis e papel na mão, ir anotando as quadras
bem rimadas que ele continuamente repetia.
Não cheguei a saber
se eram dos seus últimos anos, ou se as compusera antes, ainda dotado de boas
faculdades mentais. Como se sabe, acontece depois de muito tempo com tantas
pessoas, que tudo que decoraram ou sabiam, repetem com tanta exatidão.
Há um tempo ai,
cheguei no apartamento da mamãe e sai procurando onde estava. Encontrei-a
sentada na poltrona do seu quarto, dizia uma poesia. Fiquei à distância
esperando que terminasse.
- Então, está
recitando poesia?
- Eu estava aqui
testando se ainda me lembrava da primeira poesia que recitei, ensinada por D. X. Professora dela. Passaram-se mais de noventa
anos.
Sem dúvida nenhuma,
vovó Duca era um poeta.
O único “verso” que
gravei foi o seguinte:
O Miranda deu na praia atrás do Guririatrás Rosinha arranjou pra Laurides Agora só falta para
Luci.
Miranda foi um
navio que afundou (1941) lá pelas imediações da Barra Nova, onde o Cricaré se
projeta no mar, lugar de indizível beleza. Nunca foi içado, mas não se diga que
em seus restos ainda restem algo que ainda se possa retirar.
Guriri é uma espécie
de coco, ainda abundante nas praias mateenses, daí o nome do que hoje é também
um populoso bairro da cidade de São Mateus e da famosa praia onde o verão
fervilha. Rosinha é a vovó, esposa do véio
Duca, Laurides uma das tantas moças que passaram “pela cozinha” da casa, assim
como Luci.
Aquela, seduzida
por alguma conterrânea daquele tipo que “tira empregada boa da casa dos outros”
prometendo vida melhor, quanto mais no Rio de Janeiro, rumou para a Cidade
maravilhosa e nunca mais deu notícias. Luci teve um filho de um dos rapazes que
frequentavam a casa e ainda andou lá pela cidade, depois sumiu, quem sabe por
onde terá ido andar. Assim sendo, a fala (do verso) é apenas de efeito, ou para
completar a rima.
O fato é que o vovô
era mesmo uma figura. E acabam de aflorar lembranças.
Ah, tinha lá meus dez
anos, quando improvisamente, entro no quarto onde ele trocava a roupa, cantando
inocentemente: Eu vi uma barata na careca
do vovô, e quando ela me viu, bateu asas e voou.
Ainda o ouvi perguntando: O quê, menina, o
quê, menina? mas eu já estava longe e correndo até hoje...
Muitas vezes me
chamou, me entregava uma caneca, uma moeda de reis, não sei quanto e mandava:
- Vai ali, na loja
do Zeca e compre uma dose de Parati pra mim.
– Era o Zeca Pinha, José Pinha, casado com uma sobrinha dele, dono de um
sorriso ainda inapagado na minha lembrança, gozador, alegre, muito religioso.
Não perdia uma Missa de domingo.
Acho que era uma cachacinha, qualquer, mas ele usava o
nome de uma outra melhor, a Parati. Apenas um aperitivo. Sentado à mesa, enquanto a comida não vinha,
fazia um certo ritmo passando o garfo ao lado do prato. Para qualquer alimento,
da banana à jaca, só comia com farinha.
Gostava de tirar
uma soneca na rede e fazia aquela outra rede, a de pescar. Das suas idas ao
Quadrado, para dias de pesca, não me lembro como era a saída, mas das voltas...
como lembro! Ele montava um cavalo, dois ou três outros animais com cangalhas
vinham repletas de siri e caranguejo já ferventados (ou cozidos), vermelhinhos
que dava gosto, com o que nos deliciávamos ali mesmo.
Ouvi contar que era
intrépido remador e não temia mergulhar para pegar o remo no fundo do rio,
quando escapava de suas mãos.
A casa em que morou
na Rua do Alecrim depois que veio com a família de mudança para a cidade,
oriundo do Rio Preto, tinha um quintal enorme, findava do outro lado. Lá nos
fundos, construiu uma pequena casa, onde tinha tudo que o entretinha: celas ou
arreios, cangalhas, redes, apetrechos que lhe serviam ao ofício de pescador.
Havia também uma rede para aquela tal soneca. Era um lugar só seu, mas a habilidade de
Rachid fez com que permitisse que ela estudasse lá. “Eu me sentia num
escritório”, afirma a mana.
Lá no fundo do
quintal, podia até mexer com alguma menina que passasse, Rosinha não tava vendo...
Um bom homem, em
virtude de queda de cavalo, puxava de uma perna, nada que o impedisse de fazer
o que queria. Viveu para a família.
Vovó quase cega,
ainda cuidou dele, quando adoeceu, enquanto viveu, dava até comida na boca, mas
acabou que o precedeu na eternidade.
As lembranças fazem
bem. Como é verdade que com ele vivemos os tais velhos
tempos, belos dias...