Porque recordar é viver...
Vó Zica costumava sentar-se à beira do
fogão de barro de sua casa, para “quentar fogo”, como ela dizia. Será que vó
Zica “quentava o fogo” ou era o calor do fogo que a “quentava”?
Alegre, depois de saborear com boa
disposição o prato de comida que a filha lhe preparava, estava sempre disposta
a repetir velhas histórias. Principalmente, do tempo da escravidão. Entre
tantas que ouvi, guardei bem a da preta Zuma.
Era uma negra muito bem traçada, rosto de Sinhá em cara de escrava. Um nariz
afiladíssimo... E como tinha graça no andar! Tudo que botava em cima, nela
ficava muito bonito. Muito asseada, cheirava que nem flor.
Zuma acordava sempre antes do sol,
vestia-se como princesa nos seus andrajos de mucama, dirigia-se à cozinha. Não
se passava muito tempo e o cheiro do café e do pão fresquinho se espalhava pelo
casarão. Tinha uma mão de fada.

Foi exatamente Sinhá quem resolveu perguntar-lhe um dia:
-
Zuma, vejo-a sempre ocupada nos diversos afazeres. Tudo seu é muito bem feito!
Mas por que nunca sorri?
Com
um olhar amigo e doce, envolveu a Senhora, mas não lhe deu resposta. Havia
tanta grandeza naquela atitude, que nem
mesmo o fato de se tratar de uma escrava diante de sua Senhora, fez com que
Sinhá se ofendesse. Respeitou aquele silêncio, como quem compreendera que eram muitas e sólidas as
razões.
Zulu,
filho do escravo Dundi, enamorou-se de Zuma com quem pretendeu casar-se. Era um
negro alto, corpo de atleta. Bem olhado por todas as negras casamenteiras da
senzala.
Havia
outros pretos que muito gostariam de casar com ela. Zulu, no entanto, se
destacava, porque tinha grandeza de alma e era muito respeitoso. Se a moça
reunia todas as qualidades para ser uma boa mulher, não faltavam ao rapaz, as
de um bom marido.
Ao
se aproximar, assim que pode, da escolhida e pedir-lhe a mão em casamento,
ouviu como resposta:
-
Não. Não quero me casar. Não quero ser mãe de outros escravos que devam viver a
vida como nós. Aprendi no catecismo que Deus criou o homem à sua imagem e
semelhança e que todos somos seus filhos. Ou surge o dia da liberdade e todos
seremos mesmo iguais, ou, pelo menos, eu
não gerarei escravos.
Os
dias passaram-se. Certa manhã, não se espalhou pela casa, o cheiro do café e do
pão fresquinho de Zuma que também não era vista em qualquer outro lugar.
Procurada
na velha cama, num canto da senzala, a escrava
ardia em febre, pronunciando palavras que ninguém pode entender.
Avisada,
Sinhá mandou que lhe chamassem um médico. Antes que ele chegasse, a alma de
Zuma voou para Deus no céu. Exalava o
último suspiro, enquanto um negrinho que
surgiu correndo, anunciava a boa notícia: Somos
livres, somos livres, acabou a escravidão!
Zuma
não viu despontar a aurora da liberdade física na terra, mas viu-a em grandeza
sem fim, nascendo para a vida eterna.
Marlusse Pestana Daher
em homenagem aos que continuam na
luta...
Para conhecimento: http://www.historiailustrada.com.br/2014/04/raras-fotografias-escravos-brasileiros.html