segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

A FÚRIA DAS ÁGUAS

                                                                                                                                               Jô Drumond

No pluvioso janeiro de 2011, com tantas tragédias causadas por inundações em Minas e em São Paulo, assim como por deslizamentos das encostas na região serrana do RJ, os mortos se multiplicam a cada dia. Muitos corpos são encontrados, a cada instante, afogados ou soterrados sob toneladas de lama e de escombros. A ira das águas arrasta e submerge cidades inteiras, incluindo casas sólidas, prédios, hospitais, supermercados, postos de abastecimento e meios de transporte. Diversas pontes e estradas de rodagem estão totalmente destruídas.  Em menos de uma semana já foram encontrados mais de 600 corpos sob os escombros. Esse número não pára de crescer. A mídia mundial e nacional amplia a cada instante as proporções da tragédia. Na busca aflita por parentes e amigos desaparecidos, vêem-se, estampados nas fisionomias focalizadas pelas reportagens, o desespero de alguns e a esperança de outros. Nas cidades e lugarejos ilhados, tudo é feito precariamente por meio de helicópteros, único meio de transporte possível. Pessoas localizadas no alto das vertentes não conseguem descer a pé, nem podem ser resgatadas por via aérea.  Ao avistarem alguma máquina voadora, fazem gestos aflitos demonstrando sede e fome. Cenas inesquecíveis são registradas a todo o momento: famílias inteiras soterradas sob monturos de entulhos e lamaçal; dos escombros extraem-se crianças assustadas, às vezes incólumes, algumas feridas e muitas já sem vida.  Vêem-se, a cada instante, casas, carros, seres humanos e animais domésticos arrastados pelas águas barrentas. A negra dama da foice, afoita, “singing in the rain” vai ceifando o que bem lhe convém. No entanto, em meio a tanta desgraça, uma imagem amena: uma jovem dá à luz a um novo ser. É a eclosão da vida desdenhando da morte.
Sinto-me numa situação extremamente incômoda pelo fato de não poder ajudar nas buscas aos desaparecidos, no alento aos feridos e aos enlutados, nem na distribuição de víveres. Ao abrigo das chuvas, assentada confortavelmente num sofá, diante do televisor, vejo o noticiário diário. Sob o ritmo intermitente da chuva entrecortado pelo ribombar de trovões, sinto-me impotente, pequena, cada vez mais diminuta diante da catástrofe. Pior que isso, sinto-me culpada pelo fato de ter casa sólida, fora das zonas de risco, de estar rodeada pela família e de ter mesa farta. À noite, deito-me pensando naqueles que estão ao relento ou amontoados em abrigos improvisados. Durante as refeições, penso nos famintos e sedentos. Minha culpa cresce proporcionalmente à tragédia. Pergunto-me a razão de ser da própria sorte, que me é madrinha, mas madrasta a tantos outros.
A exaustiva repetição das cenas, no jornal televisivo e na Internet, assim como a inclusão de notícias aterradoras, causam-me um efeito de entorpecimento.  Fortes emoções e lágrimas cedem lugar a uma espécie de distanciamento ou torpor. Distante da zona de risco, sem nenhum parente ou conhecido radicado na região serrana, sinto-me afortunada pelo fato de me encontrar incólume. As cenas vistas, revistas e “trevistas” passam a ter uma conotação ficcional, diante de meus olhos. Habituada às tragédias noticiadas cotidianamente, passo a encarar esse evento como um a mais nas estatísticas mundiais de cataclismos. A meu ver, o excesso de informação tem o poder de enrijecer a sensibilidade do espectador, que só entra em desespero ao se dar conta de que algum parente, amigo ou colega, por desventura, passa férias ou faz turismo na região afetada. Nesse caso, o que está distante entra abruptamente em sua casa e em sua vida. A desgraça alheia é bem menos impactante do que a desgraça de pessoas queridas. Foi o que aconteceu comigo. Óbitos oriundos dos deslizamentos de Nova Friburgo, que apenas figurariam nas estatísticas anuais, estão cravados em mim, como desoladoras lanças pontiagudas. 



16/01/2011