terça-feira, 15 de abril de 2014

VOZES FEMININAS

Por J. G. de Araujo Jorge
1914 - 1987  Poeta e político. 
Para o observador desavisado, a impressão é a de que no Brasil de nossos dias, apenas um nome de mulher se impõe entre os grandes poetas, o de Cecília Meireles. Na verdade, ultimamente, a crítica brasileira tem esquecido injustamente muitos valores expressivos da nossa poesia feminina,   Ainda agora, ao lançar, inteiramente refundida, a terceira edição de “Os Mais Belos Sonetos que o Amor Inspirou”, volume I, poesia brasileira, contendo quatrocentos sonetos de todos os tempos e escolas, relendo suas provas comprovei essa realidade, diante de peças líricas da maior beleza e emoção, assinadas por nossas poetisas. E figuram no volume, entre outras, mais antigas, ou mais recentes: Amélia Tomás, Ana Amélia, Beatrix dos Reis Carvalho, Benedita de Melo, Carmem Cinira, Colombina (Ylde Schloembach), Corina Rebuá, Cíntia Castelo Branco, Francisca Júlia, Heli Menegali, Gilka Machado, Henriqueta Lisboa, Ilka Sanches, Itacy de Souza Teles, Lilinha Fernandes, Maria Eugênia Celso, Maria José Giglio, Maria José Aranha de Resende, Maria Sabina, Maria Teresa de Andrade Cunha, Nísia Nóbrega, Seleneh de Medeiros, Vivência Jambo da Costa, Vicentina de Carvalho, e mais algumas, todo um grupo de nomes, no mesmo plano em que se encontram nossos melhores poetas.
    Nas exíguas proporções de nossa crônica, gostaríamos de destacar quatro vozes líricas, de diapasões diferentes, inexplicavelmente silenciadas ou desconhecidas do grande público. Uma, já desaparecida; três delas, ainda em nosso convívio, muito embora seus cantos se percam na azoada vida contemporânea, onde música e ruído se confundem, onde poesia e charada se identificam.
   
Quem se lembra de Carmem Cinira? Carioca, falecida com menos de trinta anos, em 1933, seus versos eram publicados por jornais e revistas na última década de sua vida. De uma poesia simples, comunicativa, encontrou no soneto uma de suas formas preferidas de expressão. Selecionei de Carmem Cinira três sonetos para a antologia, um deles, realmente antológico, copiado nos cadernos de poesia, obrigatoriamente incluído em qualquer seleção no gênero. É o intitulado.

INCANSÁVEL
Velho sonho de amor que me fascina,                                                 causa das mágoas que me têm pungido                                                      e que, entanto, conservo na retina                                                      como a fonte de um bem inatingido... 

Flana velada, cântico em surdina  
de uma alma triste, um coração ferido,
nem pode haver linguagem que defina 
o que eu tenho, em silêncio padecido!  

Mas, ainda que mal recompensado      
meu amor há de sempre desculpar-te  
humilde, carinhoso, devotado...   

Bendito seja o dia em que te vi,  
pois não há maior glória do que amar-te      
nem melhor gozo que sofrer por ti!

    Citemos agora o nome de uma das maiores poetisas brasileiras de todos os tempos: Gilka Machado. De uma poesia sensorial, de ritmos quentes, pletórica de imagens, Gilka dá continuidade à melhor tradição de nossa sensibilidade e de nossa etnia. Permanece entretanto em silêncio, um injustificado silêncio que nos priva de seus versos tão cheios de belezas. E aqui fica uma pergunta aos nossos editores: porque não reeditar a obra de Gilka Machado, ou pelo menos um volume de suas poesias escolhidas?    
    Certos antolhos críticos, estreitas convenções estéticas vêm sufocando o que de melhor existe em nossas letras. Gilka Machado é uma vítima dessa “segregação”. Vou escolher ao acaso, um dos quatro sonetos que incluí na antologia:    

SONÊTO


Sob o céu, sobre o mar, dentre um profundo
silêncio de ermo, em meio às rochas nuas,   
aninhamos na noite, como duas   
aves, ébrios de nós, longe do mundo.   

Em teus olhos de treva ardiam luas;     
errava um cheiro, não sei onde oriundo;       
e minhas mãos, de tuas mãos no fundo,       
tinham desejos de morrer nas tuas.     

Sangrando luz, pendida a trança flava, 
uma estrela do além se despenhava...  
? Sorriste olhando-a, entristeci-me ao vê-la...

Com a alma em fogo, pela noite fria,   
em vertigens de amor eu me sentia     
rolar no abismo como aquela estrela.


    Destaquemos em seguida, aquela que poderíamos chamar de a nossa Virginia Vitorino: Benedita de Melo. Exímia sonetista, com um verso musical, tal como a grande poetisa portuguesa, Benedita de Melo possui apenas um livro publicado: “Luz da Minha Vida”. E é realmente a sua luz, pois a poetisa cega encontra na poesia seu iluminado mundo interior. Sua lírica vem valorizada pela capacidade de fixar conflitos psicológicos e situações do cotidiano. Um dos mais belos momentos de inspiração é este  

VERGONHA


- “Menina!” Disse alguém, no grande instante
em que era dividido em dois um ser...  
E essa palavra, pelo mundo avante,     
foi meu santo orgulho de viver... 

Ser menina. Ser moça. Ser constante.  
Ser caráter. Ser honra. Ser dever.       
Por mais tropeços que encontrasse adiante   
nunca me entristeci de ser mulher.      

Mas veio o Amor. Veio a traição ferina  
e todo o orgulho meu de ser menina,   
roubou-o a sorte, malfadada e crua;    

e veio a dor, e veio a mágoa, o tédio,  
e a vergonha escaldante e sem remédio       
de ter sido mulher para ser tua.
  Finalmente, uma outra poetisa de que poucos terão ouvido falar. E a razão é a mesma: possui também apenas um livro publicado. Uma coleção de poemas e sonetos líricos: “Primavera, Escuta...”
Conhecia-a há anos, muito mocinha, em Friburgo. Sei que se casou, que reside em São Paulo, que é uma dona-de-casa feliz, às voltas com todos os problemas rotineiros de um lar. Telefonou-me faz algum tempo, quando lancei a primeira edição da antologia, para agradecer-me o fato de “tê-la incluído entre tantos poetas consagrados”. Mas não fiz favor. Maria Teresa de Andrade Cunha, este o seu nome de solteira, o seu nome literário, disse-me também que não tem mais tempo para a poesia. Não acredito. Estou certo de que apenas recolhe o canto, até nova surpresa. É uma poetisa como as demais, neo-romântica, de expressão moderna. Se poesia é emoção e simplicidade, Maria Teresa faz poesia, e da mais pura. Vamos ouvi-la, numa homenagem à sua arte e à de Friburgo daquele tempo, com o seu soneto:


QUERIA QUE CHEGASSES    

Festiva, em frente, se ergue a serrania 
tocada de um dourado cambiante;       
queria que chegasses neste instante;    
nem sabes como está bonito o dia!      

Anda no ar transparente uma alegria   
uma alegria imensa, delirante...  
Como está perto o azul do céu distante!
Que perfume e que luz, na tarde fria!   

Queria que chegasses de surpresa.      
É tão maravilhosa a natureza,     
juncando esse caminho, há tanta flor!  

...Sairíamos juntos, devagar...    
Sem destino, sem pressa de voltar       
de mãos dadas, felizes, meu amor!      

(Crônicas.  de JG de Araujo Jorge extraído do livro
"No Mundo da Poesia" Edição do Autor -1969 )