rumo ao sistema de participação?
Ana Claudia Chaves Teixeira
Clóvis Henrique Leite de Souza
Paula Pompeu Fiuza de Lima*
As entidades e movimentos reunidos em torno da Plataforma da Reforma Política
já alertavam, desde 2006, que o pouco diálogo entre os espaços dos conselhos e
das conferências estava reproduzindo a fragmentação das políticas públicas. Com
seu caráter majoritariamente consultivo, setorial e distante das decisões
econômicas, a avaliação era de que conselhos e conferências pouco estariam
influenciando e controlando as políticas públicas. Por isso, uma das bandeiras
da Plataforma - mesmo sem entrar em detalhes - era um sistema integrado de
participação popular nas políticas públicas.
Como já afirmamos em artigo anterior, o governo Lula contribuiu para o aumento
do número de conselhos e conferências nacionais. De alguma forma, disseminou-se
em vários Ministérios a ideia de criar sistemas participativos por políticas
públicas, muito impulsionados – é importante dizer – por lutas e bandeiras da
sociedade civil. Alguns lograram essa meta, como a área de Segurança Alimentar,
e outros sistemas estão se constituindo. Ao analisarmos as resoluções das
conferências nacionais encontramos que em pelo menos outras nove áreas de
políticas, há propostas de criação de sistemas: cidades, cultura, segurança
pública, pessoa idosa, educação, juventude, esportes, ciência e tecnologia e
direitos humanos. E no caso da cultura, a lei que cria o sistema foi aprovada
recentemente pela Câmara dos Deputados***. Ou seja, a ideia de criar sistemas
de políticas públicas com canais de participação (como conselhos e
conferências) parece ser hoje uma das grandes alternativas para a
descentralização administrativa.
Outras políticas criaram conselhos e conferências com o mesmo tema, mas ainda
não falam de um sistema participativo ou deliberativo. Este artigo vai discutir
em que momento nos encontramos no debate sobre um sistema de participação e
quais os principais desafios que ainda temos pela frente. Nesse sentido, duas
iniciativas merecem destaque no debate sobre um sistema de participação.
Em 2010, no fim do Governo Lula, foi levantada uma discussão a respeito da
necessidade de regulamentação das políticas sociais em desenvolvimento no país.
Chegou-se a falar na formulação de um projeto de lei chamado "Consolidação
das Leis Sociais". A proposta incluía garantir em lei o funcionamento de
mecanismos de participação social no processo de elaboração das políticas
públicas, como conselhos e conferências.
A ideia não foi para frente. Além de ser um ano eleitoral (quando dificilmente
o Congresso Nacional teria tempo hábil de discutir e aprovar a proposta), ela
foi alvo de questionamentos pela possibilidade de engessamento das ações
sociais. Afinal, soluções adequadas em um momento poderiam não ser pertinentes
quando a situação se alterasse e o detalhamento legal poderia impedir
inovações.
Em 2011, a Secretaria-Geral da Presidência da República elencou como uma de
suas prioridades a constituição de uma Política e de um Sistema de
Participação. Em novembro de 2011, foi realizado, por esse órgão, um seminário
nacional com a presença de mais de 350 participantes para elaborar propostas
para um Sistema Nacional de Participação Social, a ser implementado até 2014.
Além disso, foi rearticulado o Fórum Governamental de Participação Social,
espaço voltado aos gestores federais para a discussão de questões relacionadas
ao tema.
Mas como pensar um Sistema de Participação em um país como o Brasil? Quais são
de fato os sistemas de participação já existentes (que já articulam instâncias
participativas diversas) e o que é possível aprender com eles? Quais são os
espaços onde potencialmente poderia haver maior integração?
O que são sistemas de políticas públicas com participação?
Em geral, os sistemas de políticas públicas dizem respeito a como atribuir
responsabilidades e distribuir recursos públicos entre os entes federativos,
procurando responder à questão sobre como deve se dar a descentralização
naquela área. Em uma pequena parte desses sistemas, há a previsão de criação de
conselhos em todos os níveis da federação, e conferências do nível local ao
nacional com certa periodicidade. O que parece estar em jogo aqui é que as
conferências seriam espaços mais abertos à participação e mais eventuais,
enquanto os conselhos espaços mais permanentes, e mais fechados a alguns
participantes. E, segundo as leis que criam esses espaços, seria desejável que
as duas instâncias se articulassem de alguma forma. Em uma pequena parte das
áreas de políticas - como assistência social, saúde e segurança alimentar – já
há a previsão legal dessa articulação.
No caso da Saúde, o sistema mais antigo (desde 1990), a lei 8.142/90 instituiu
o conselho e a conferência como instâncias colegiadas nos diferentes níveis do
Sistema Único de Saúde (SUS) e explicitou o caráter permanente e deliberativo
do conselho. À Conferência coube “avaliar a situação de saúde e propor as
diretrizes para a formulação da política de saúde nos níveis correspondentes” e
ao Conselho a atribuição de “formulação de estratégias e no controle da
execução da política de saúde na instância correspondente, inclusive nos
aspectos econômicos e financeiros” (lei 8.142/90).
No caso da assistência social, o Conselho e a existência de Conferencias
precederam o sistema legalmente construído. Em 1993, foi aprovada a Lei
Orgânica da Assistência Social (LOAS) que trouxe mais elementos ao redesenho
institucional fortalecendo a gestão descentralizada e reafirmando a necessidade
de articulação de ações em torno de uma política nacional. Já na LOAS, há
menção aos Conselhos de Assistência Social como instâncias deliberativas do
sistema descentralizado e participativo de assistência social, de caráter
permanente e composição paritária entre governo e sociedade civil. Durante a 4ª
Conferência Nacional de Assistência Social, em 2003, foi deliberada a
necessidade da construção e implementação do Sistema Único de Assistência
Social – SUAS, que seria o principal instrumento para dar efetividade a uma
política pública de assistência social. Tanto a LOAS como o SUAS visam à gestão
descentralizada e participativa da política. Em 2011, o conselho passou a ter
como competência o encaminhamento das deliberações das conferências, sem
dúvida, um avanço na gestão participativa da política.
Já na área de Segurança Alimentar, o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e
Nutricional (Consea) foi criado em 1993, e desativado em 1995. Em 2003, no
início do governo Lula, voltou a funcionar, e está garantido pela Lei Orgânica,
de 2006, fazendo parte do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional
(SISAN). Inspirado nas deliberações das respectivas Conferências Nacionais, o
Consea acompanha e propõe diferentes programas, como Bolsa Família, Alimentação
Escolar, Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar e Vigilância Alimentar
e Nutricional, entre outros. Tem por objetivo, ainda, convocar a Conferência
Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, com periodicidade não superior a
quatro anos, bem como definir seus parâmetros de composição, organização e
funcionamento, por meio de regulamento próprio.
O Conselho mudou de papel a partir do momento em que o Sistema foi criado, em
2006. Ele permaneceu como órgão de assessoramento da presidência, mas passou a
ter um papel mais pro-ativo na articulação entre setores do governo. Houve um
empoderamento também das conferências como lugar privilegiado para a formulação
de diretrizes da política e decisão sobre formas de indicação dos
representantes da sociedade civil. Houve também uma maior estruturação interna
do Consea, com mais estruturas de apoio e de funcionamento (como secretaria
executiva). Há grande ênfase na articulação, apostando-se na Câmara
Interministerial, e na necessidade de articulação com outros conselhos, e
incluem-se mais ministérios entre os representantes do governo.
Vemos com os exemplos da Saúde, Assistência Social e Segurança Alimentar que a
participação pode ser elemento constitutivo dos sistemas de políticas públicas.
Os conselhos e as conferências, na medida em que existem em diferentes níveis
da federação, podem ser parte da estratégia de articulação do sistema. Um dos
desafios é justamente desenvolver arranjos institucionais capazes de garantir
legalmente o espaço para a participação, mas também permitir a adaptação ao
contexto político daquele setor. Outro elemento crucial é a articulação entre
os próprios espaços de participação, seja em nível municipal, estadual ou
nacional.
Para além dos sistemas previstos legalmente, quais politicas públicas estão
– com alguma regularidade – fazendo conferências e mantêm um conselho nacional
regular?
Dentre os 59 conselhos nacionais existentes, menos da metade (para ser preciso
apenas 24) têm conferências nacionais com o mesmo nome. Dentre esses 24
conselhos, se levarmos em conta quais áreas mais se abrem à criação de
conselhos e conferências, e quais menos se abrem, foi possível perceber que a
distribuição é muito desigual. Para melhor entender quais são as áreas de
políticas que mais integram conselhos e conferências nacionais, agrupamos os
ministérios em quatro áreas temáticas, a saber: Articulação
Político-Institucional; Econômica; Infraestrutura e Socioambiental.
A área de política que possui mais conselhos com conferências correlatas é a
socioambiental. A classificação por áreas foi feita considerando os órgãos
governamentais aos quais os conselhos e as conferências estão vinculadas. A
área que menos possui esses espaços de participação é a área econômica. Isso
corrobora a tese que circula entre as organizações participantes desses espaços
de que há participação em áreas sociais, mas pouca participação em áreas
econômicas e em decisões estratégicas como àquelas relacionadas à infraestrutura
(energia, transportes etc.).
Entre as possíveis formas de atuação do conselho na realização da conferência
estão: a) o conselho coordena a conferência, b) o conselho é criado ou
reformulado a partir da conferência, c) o conselho integra a comissão organizadora
e, d) o conselho apenas participa da conferência. Não é preponderante, mas
considerável, a proporção de conselhos que coordenam a conferência: 32%. Ao
mesmo tempo, apenas três foram os casos de conselhos criados ou reformulados a
partir das conferências. Ambas as informações sinalizam baixa
institucionalização se consideramos o pequeno enraizamento das relações entre
conselhos e conferências.
O que podemos perceber é que as vinculações entre conselhos e conferências
nacionais ainda são frágeis. Considerando que somente 38% dos conselhos
nacionais mapeados possuem conferências correlatas e que nem sempre esses se
envolvem na coordenação da conferência, é possível apontar alguns limites à
visão de que conselhos e conferências já fazem parte de um sistema
deliberativo. O que existe é um potencial ainda não realizado.
Como se dá a articulação entre conselhos e conferências que a princípio tratam
de temas próximos?
Se o potencial de integração entre conselhos e conferências de um mesmo tema
ainda é pouco realizado, ainda menos existentes são as interfaces entre espaços
participativos de diferentes políticas públicas. É nesse momento que se percebe
que o modo fragmentado de funcionar do Estado também se repete nas instâncias
de participação social. Ou seja, poucos ou quase inexistentes são os mecanismos
formais de articulação entre conselhos de áreas correlatas. Em alguns casos, as
conferências nacionais podem ser um instrumento de integração intersetorial,
quando há a convocação conjunta de conferência que trata de temas relacionados
a diferentes áreas de políticas, como a de Saúde Ambiental, que reuniu o
Ministério da Saúde, das Cidades e do Meio Ambiente, com seus respectivos
conselhos.
A baixa articulação entre as instâncias de políticas públicas correlatas acaba
por gerar sobreposições de pautas, agendas e representação nesses espaços
participativos. Isso coloca em xeque a efetividade dos espaços, já que suas
decisões não são apropriadas pelas instâncias executoras. Mais de um Conselho,
por exemplo, pode deliberar sobre os mesmos objetos, pois há competências
compartilhadas. E, na implementação das deliberações, não são observadas
possíveis contradições. Existe, portanto, um desafio imediato quando se pensa a
articulação entre conselhos e conferências que tratam de temas próximos:
identificar os pontos de contato, como competências comuns, para buscar a
sinergia nas ações.
Um tipo de iniciativa que pode fortalecer a articulação entre colegiados de
temas correlatos é a criação de Fóruns Interconselhos. O maior deles está sob
responsabilidade conjunta do Ministério do Planejamento e da Secretaria-Geral,
convocado com o objetivo de promover a participação no processo de elaboração e
monitoramento do Plano Plurianual 2012-2015 e com a expectativa de desenvolver
estratégias para o acompanhamento das ações de governo. Além dessa experiência,
também houve a criação de Fórum Interconselhos para o monitoramento do Programa
Brasil sem Miséria. Essas iniciativas estão sendo incentivadas pelo governo
federal e podem ser vistas como oportunidades para a ação conjunta de
conselhos, mas a rotatividade na participação, a baixa apropriação do espaço
pela sociedade civil e a dependência de relatórios produzidos exclusivamente
pelo governo para as ações de monitoramento das políticas transversais não nos
permitem afirmar que esses fóruns, de fato, serão capazes de promover a
participação empoderada de atores da sociedade civil.
Quais seriam, então, as pistas para superar a fragmentação e o paralelismo?
Como é possível perceber, falar em um sistema de participação no Brasil é um
enorme desafio. Isso não se deve apenas à extensão territorial do país ou ao
complexo arranjo institucional que distribui tarefas e recursos entre os entes
da federação. O que percebemos é que mesmo em áreas com sistemas de políticas
instituídos em lei há dificuldades de efetivação da articulação entre as
instâncias participativas nos diferentes níveis da federação. Além disso, fica
apenas como expectativa a real conexão entre conselhos e conferências, mesmo
sendo espaços com grande potencial de articulação dentro de um setor de
política pública. E, se dentro de um mesmo tema os espaços participativos não
conversam, é possível sentir o silêncio entre áreas correlatas.
Conselhos e conferências são instrumentos participativos utilizados amplamente
no Brasil desde o período da redemocratização, e difundidos mais amplamente no
período recente. Dada a multiplicação das instituições participativas sem a
esperada articulação entre elas, tem se debatido a necessidade de um sistema
participativo no Brasil, do qual conselhos e conferências por políticas
públicas seriam centrais. Nesse debate, além de pensarmos desenhos
institucionais flexíveis e adequados às diferentes realidades das políticas
públicas é necessário superar a fragmentação e o paralelismo nas instâncias já
existentes.
Para tal, o potencial de articulação entre conselhos e conferências poderia ser
explorado buscando a complementaridade. Caberia, pois, deixar claro quais os
papéis dos conselhos e das conferências nos sistemas de políticas. Nesse
sentido, observar as distintas características de cada um dos tipos de espaços
de participação seria fundamental na repartição de competências. Além disso, a
interconexão explícita poderia trazer efetiva articulação. Por exemplo, o
conselho poderia ser legalmente responsável por colaborar na organização da
conferência, tendo assim oportunidade de construir a pauta desse amplo fórum de
debates. Poderia também ser explicitada a função do conselho em acompanhar o
encaminhamento das propostas formuladas nas conferências. Outras conexões
poderiam ser buscadas em um setor de política pública, mas sem descuidar das
interações com áreas correlatas. Nesse sentido, instâncias conjuntas entre
conselhos ou mesmo conferências com temas transversais poderiam ser instituídas
visando à integração.
Publicação:
http://www.reformapolitica.org.br/artigos-e-colunas.html