quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

ARTICULAÇÃO


rumo ao sistema de participação?
Ana Claudia Chaves Teixeira
Clóvis Henrique Leite de Souza
Paula Pompeu Fiuza de Lima*


As entidades e movimentos reunidos em torno da Plataforma da Reforma Política já alertavam, desde 2006, que o pouco diálogo entre os espaços dos conselhos e das conferências estava reproduzindo a fragmentação das políticas públicas. Com seu caráter majoritariamente consultivo, setorial e distante das decisões econômicas, a avaliação era de que conselhos e conferências pouco estariam influenciando e controlando as políticas públicas. Por isso, uma das bandeiras da Plataforma - mesmo sem entrar em detalhes - era um sistema integrado de participação popular nas políticas públicas.      

Como já afirmamos em artigo anterior, o governo Lula contribuiu para o aumento do número de conselhos e conferências nacionais. De alguma forma, disseminou-se em vários Ministérios a ideia de criar sistemas participativos por políticas públicas, muito impulsionados – é importante dizer – por lutas e bandeiras da sociedade civil. Alguns lograram essa meta, como a área de Segurança Alimentar, e outros sistemas estão se constituindo. Ao analisarmos as resoluções das conferências nacionais encontramos que em pelo menos outras nove áreas de políticas, há propostas de criação de sistemas: cidades, cultura, segurança pública, pessoa idosa, educação, juventude, esportes, ciência e tecnologia e direitos humanos. E no caso da cultura, a lei que cria o sistema foi aprovada recentemente pela Câmara dos Deputados***. Ou seja, a ideia de criar sistemas de políticas públicas com canais de participação (como conselhos e conferências) parece ser hoje uma das grandes alternativas para a descentralização administrativa.                

Outras políticas criaram conselhos e conferências com o mesmo tema, mas ainda não falam de um sistema participativo ou deliberativo. Este artigo vai discutir em que momento nos encontramos no debate sobre um sistema de participação e quais os principais desafios que ainda temos pela frente. Nesse sentido, duas iniciativas merecem destaque no debate sobre um sistema de participação.     

Em 2010, no fim do Governo Lula, foi levantada uma discussão a respeito da necessidade de regulamentação das políticas sociais em desenvolvimento no país. Chegou-se a falar na formulação de um projeto de lei chamado "Consolidação das Leis Sociais". A proposta incluía garantir em lei o funcionamento de mecanismos de participação social no processo de elaboração das políticas públicas, como conselhos e conferências.

A ideia não foi para frente. Além de ser um ano eleitoral (quando dificilmente o Congresso Nacional teria tempo hábil de discutir e aprovar a proposta), ela foi alvo de questionamentos pela possibilidade de engessamento das ações sociais. Afinal, soluções adequadas em um momento poderiam não ser pertinentes quando a situação se alterasse e o detalhamento legal poderia impedir inovações.           

Em 2011, a Secretaria-Geral da Presidência da República elencou como uma de suas prioridades a constituição de uma Política e de um Sistema de Participação. Em novembro de 2011, foi realizado, por esse órgão, um seminário nacional com a presença de mais de 350 participantes para elaborar propostas para um Sistema Nacional de Participação Social, a ser implementado até 2014. Além disso, foi rearticulado o Fórum Governamental de Participação Social, espaço voltado aos gestores federais para a discussão de questões relacionadas ao tema.     

Mas como pensar um Sistema de Participação em um país como o Brasil? Quais são de fato os sistemas de participação já existentes (que já articulam instâncias participativas diversas) e o que é possível aprender com eles? Quais são os espaços onde potencialmente poderia haver maior integração?  

O que são sistemas de políticas públicas com participação?           

Em geral, os sistemas de políticas públicas dizem respeito a como atribuir responsabilidades e distribuir recursos públicos entre os entes federativos, procurando responder à questão sobre como deve se dar a descentralização naquela área. Em uma pequena parte desses sistemas, há a previsão de criação de conselhos em todos os níveis da federação, e conferências do nível local ao nacional com certa periodicidade. O que parece estar em jogo aqui é que as conferências seriam espaços mais abertos à participação e mais eventuais, enquanto os conselhos espaços mais permanentes, e mais fechados a alguns participantes. E, segundo as leis que criam esses espaços, seria desejável que as duas instâncias se articulassem de alguma forma. Em uma pequena parte das áreas de políticas - como assistência social, saúde e segurança alimentar – já há a previsão legal dessa articulação.           

No caso da Saúde, o sistema mais antigo (desde 1990), a lei 8.142/90 instituiu o conselho e a conferência como instâncias colegiadas nos diferentes níveis do Sistema Único de Saúde (SUS) e explicitou o caráter permanente e deliberativo do conselho. À Conferência coube “avaliar a situação de saúde e propor as diretrizes para a formulação da política de saúde nos níveis correspondentes” e ao Conselho a atribuição de “formulação de estratégias e no controle da execução da política de saúde na instância correspondente, inclusive nos aspectos econômicos e financeiros” (lei 8.142/90).        

No caso da assistência social, o Conselho e a existência de Conferencias precederam o sistema legalmente construído. Em 1993, foi aprovada a Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS) que trouxe mais elementos ao redesenho institucional fortalecendo a gestão descentralizada e reafirmando a necessidade de articulação de ações em torno de uma política nacional. Já na LOAS, há menção aos Conselhos de Assistência Social como instâncias deliberativas do sistema descentralizado e participativo de assistência social, de caráter permanente e composição paritária entre governo e sociedade civil. Durante a 4ª Conferência Nacional de Assistência Social, em 2003, foi deliberada a necessidade da construção e implementação do Sistema Único de Assistência Social – SUAS, que seria o principal instrumento para dar efetividade a uma política pública de assistência social. Tanto a LOAS como o SUAS visam à gestão descentralizada e participativa da política. Em 2011, o conselho passou a ter como competência o encaminhamento das deliberações das conferências, sem dúvida, um avanço na gestão participativa da política.

Já na área de Segurança Alimentar, o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) foi criado em 1993, e desativado em 1995. Em 2003, no início do governo Lula, voltou a funcionar, e está garantido pela Lei Orgânica, de 2006, fazendo parte do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN). Inspirado nas deliberações das respectivas Conferências Nacionais, o Consea acompanha e propõe diferentes programas, como Bolsa Família, Alimentação Escolar, Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar e Vigilância Alimentar e Nutricional, entre outros. Tem por objetivo, ainda, convocar a Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, com periodicidade não superior a quatro anos, bem como definir seus parâmetros de composição, organização e funcionamento, por meio de regulamento próprio.      

O Conselho mudou de papel a partir do momento em que o Sistema foi criado, em 2006. Ele permaneceu como órgão de assessoramento da presidência, mas passou a ter um papel mais pro-ativo na articulação entre setores do governo. Houve um empoderamento também das conferências como lugar privilegiado para a formulação de diretrizes da política e decisão sobre formas de indicação dos representantes da sociedade civil. Houve também uma maior estruturação interna do Consea, com mais estruturas de apoio e de funcionamento (como secretaria executiva). Há grande ênfase na articulação, apostando-se na Câmara Interministerial, e na necessidade de articulação com outros conselhos, e incluem-se mais ministérios entre os representantes do governo.    

Vemos com os exemplos da Saúde, Assistência Social e Segurança Alimentar que a participação pode ser elemento constitutivo dos sistemas de políticas públicas. Os conselhos e as conferências, na medida em que existem em diferentes níveis da federação, podem ser parte da estratégia de articulação do sistema. Um dos desafios é justamente desenvolver arranjos institucionais capazes de garantir legalmente o espaço para a participação, mas também permitir a adaptação ao contexto político daquele setor. Outro elemento crucial é a articulação entre os próprios espaços de participação, seja em nível municipal, estadual ou nacional.

Para além dos sistemas previstos legalmente, quais politicas públicas estão – com alguma regularidade – fazendo conferências e mantêm um conselho nacional regular?  

Dentre os 59 conselhos nacionais existentes, menos da metade (para ser preciso apenas 24) têm conferências nacionais com o mesmo nome. Dentre esses 24 conselhos, se levarmos em conta quais áreas mais se abrem à criação de conselhos e conferências, e quais menos se abrem, foi possível perceber que a distribuição é muito desigual. Para melhor entender quais são as áreas de políticas que mais integram conselhos e conferências nacionais, agrupamos os ministérios em quatro áreas temáticas, a saber: Articulação Político-Institucional; Econômica; Infraestrutura e Socioambiental.    

A área de política que possui mais conselhos com conferências correlatas é a socioambiental. A classificação por áreas foi feita considerando os órgãos governamentais aos quais os conselhos e as conferências estão vinculadas. A área que menos possui esses espaços de participação é a área econômica. Isso corrobora a tese que circula entre as organizações participantes desses espaços de que há participação em áreas sociais, mas pouca participação em áreas econômicas e em decisões estratégicas como àquelas relacionadas à infraestrutura (energia, transportes etc.).        

Entre as possíveis formas de atuação do conselho na realização da conferência estão: a) o conselho coordena a conferência, b) o conselho é criado ou reformulado a partir da conferência, c) o conselho integra a comissão organizadora e, d) o conselho apenas participa da conferência. Não é preponderante, mas considerável, a proporção de conselhos que coordenam a conferência: 32%. Ao mesmo tempo, apenas três foram os casos de conselhos criados ou reformulados a partir das conferências. Ambas as informações sinalizam baixa institucionalização se consideramos o pequeno enraizamento das relações entre conselhos e conferências.

O que podemos perceber é que as vinculações entre conselhos e conferências nacionais ainda são frágeis. Considerando que somente 38% dos conselhos nacionais mapeados possuem conferências correlatas e que nem sempre esses se envolvem na coordenação da conferência, é possível apontar alguns limites à visão de que conselhos e conferências já fazem parte de um sistema deliberativo. O que existe é um potencial ainda não realizado.

Como se dá a articulação entre conselhos e conferências que a princípio tratam de temas próximos?


Se o potencial de integração entre conselhos e conferências de um mesmo tema ainda é pouco realizado, ainda menos existentes são as interfaces entre espaços participativos de diferentes políticas públicas. É nesse momento que se percebe que o modo fragmentado de funcionar do Estado também se repete nas instâncias de participação social. Ou seja, poucos ou quase inexistentes são os mecanismos formais de articulação entre conselhos de áreas correlatas. Em alguns casos, as conferências nacionais podem ser um instrumento de integração intersetorial, quando há a convocação conjunta de conferência que trata de temas relacionados a diferentes áreas de políticas, como a de Saúde Ambiental, que reuniu o Ministério da Saúde, das Cidades e do Meio Ambiente, com seus respectivos conselhos.     

A baixa articulação entre as instâncias de políticas públicas correlatas acaba por gerar sobreposições de pautas, agendas e representação nesses espaços participativos. Isso coloca em xeque a efetividade dos espaços, já que suas decisões não são apropriadas pelas instâncias executoras. Mais de um Conselho, por exemplo, pode deliberar sobre os mesmos objetos, pois há competências compartilhadas. E, na implementação das deliberações, não são observadas possíveis contradições. Existe, portanto, um desafio imediato quando se pensa a articulação entre conselhos e conferências que tratam de temas próximos: identificar os pontos de contato, como competências comuns, para buscar a sinergia nas ações.         

Um tipo de iniciativa que pode fortalecer a articulação entre colegiados de temas correlatos é a criação de Fóruns Interconselhos. O maior deles está sob responsabilidade conjunta do Ministério do Planejamento e da Secretaria-Geral, convocado com o objetivo de promover a participação no processo de elaboração e monitoramento do Plano Plurianual 2012-2015 e com a expectativa de desenvolver estratégias para o acompanhamento das ações de governo. Além dessa experiência, também houve a criação de Fórum Interconselhos para o monitoramento do Programa Brasil sem Miséria. Essas iniciativas estão sendo incentivadas pelo governo federal e podem ser vistas como oportunidades para a ação conjunta de conselhos, mas a rotatividade na participação, a baixa apropriação do espaço pela sociedade civil e a dependência de relatórios produzidos exclusivamente pelo governo para as ações de monitoramento das políticas transversais não nos permitem afirmar que esses fóruns, de fato, serão capazes de promover a participação empoderada de atores da sociedade civil.          

Quais seriam, então, as pistas para superar a fragmentação e o paralelismo?         


Como é possível perceber, falar em um sistema de participação no Brasil é um enorme desafio. Isso não se deve apenas à extensão territorial do país ou ao complexo arranjo institucional que distribui tarefas e recursos entre os entes da federação. O que percebemos é que mesmo em áreas com sistemas de políticas instituídos em lei há dificuldades de efetivação da articulação entre as instâncias participativas nos diferentes níveis da federação. Além disso, fica apenas como expectativa a real conexão entre conselhos e conferências, mesmo sendo espaços com grande potencial de articulação dentro de um setor de política pública. E, se dentro de um mesmo tema os espaços participativos não conversam, é possível sentir o silêncio entre áreas correlatas.

Conselhos e conferências são instrumentos participativos utilizados amplamente no Brasil desde o período da redemocratização, e difundidos mais amplamente no período recente. Dada a multiplicação das instituições participativas sem a esperada articulação entre elas, tem se debatido a necessidade de um sistema participativo no Brasil, do qual conselhos e conferências por políticas públicas seriam centrais. Nesse debate, além de pensarmos desenhos institucionais flexíveis e adequados às diferentes realidades das políticas públicas é necessário superar a fragmentação e o paralelismo nas instâncias já existentes.      

Para tal, o potencial de articulação entre conselhos e conferências poderia ser explorado buscando a complementaridade. Caberia, pois, deixar claro quais os papéis dos conselhos e das conferências nos sistemas de políticas. Nesse sentido, observar as distintas características de cada um dos tipos de espaços de participação seria fundamental na repartição de competências. Além disso, a interconexão explícita poderia trazer efetiva articulação. Por exemplo, o conselho poderia ser legalmente responsável por colaborar na organização da conferência, tendo assim oportunidade de construir a pauta desse amplo fórum de debates. Poderia também ser explicitada a função do conselho em acompanhar o encaminhamento das propostas formuladas nas conferências. Outras conexões poderiam ser buscadas em um setor de política pública, mas sem descuidar das interações com áreas correlatas. Nesse sentido, instâncias conjuntas entre conselhos ou mesmo conferências com temas transversais poderiam ser instituídas visando à integração.

Publicação: http://www.reformapolitica.org.br/artigos-e-colunas.html