domingo, 16 de fevereiro de 2014

PATRONO DA CADEIRA 13

Marcos N Cysne


Caderira 13 AMALETRAS, MARCOS NICODEMUS CYSNE 
 

Hermógenes Fonseca, cidadão universal


e Denise Machado, a guardiã da imagem de seu ex-companheiro
São Binidito falô pra nóis prestá atenção.
Nóis pobre só tem valô quando rico tem precisão.
Nóis já prestemo atenção no que são Binidito falô
Só quando rico tem precisão é que nóis pobre tem valô.

Versos do Ticumbi, Conceição da Barra, 1978.

João Guimarães Rosa dizia que “uma pessoa não morre, fica encantada”.
Hernógenes Fonseca
Guimarães Rosa era pessoa iluminada que criava a imagem existente. Qualquer criança, aliás, até os adultos compreendem essa sua constatação. Ma nem ele esclareceu como é que fica uma criatura que já nasce “encantada”. Talvez porque sejam tão poucas as que nascem especiais. Mas acontece. Não fosse assim o mundo não seria nem possível. São essas fontes de luz que fornecem a energia para a volta do mundo, das penas e dores de nós outros, pobres mortais necessitados de beber do alimento servido por esses sábios, sempre e eternamente para não secarmos sob o sol do deserto da ignorância. E uma dessas translúcidas almas humanas era o Seu Armojo.

Armojo, nascido Hermógenes Lima Fonseca, caboclo resistente, amava, sobretudo, o prazer da vida e de transitar suave e íntegro pelas belezas que ele via inteiras, na essência das manifestações dos homens e da natureza. Ele próprio um elemento anelado no encadeamento de suas descobertas e na alegria radiante de desfrutar com todas as revelações do seu conhecimento. Pródigo em expandir amizades, não criava limites ou fronteiras e vibrava com a conversa pura da mesma forma como se emocionava com o movimento do vento balançando as folhas das árvores e o perfume de apetite das fumaças evaporadas das panelas de barro ungidas pelo descoberto Sargento, mestre na feijoada gorda e de todos os quitutes da magia do sítio Pixingolê, panelas que deslumbravam, também, pela multiplicação de suas dádivas, porque nunca ficavam vazias, mesmo quando a multidão de chegantes ultrapassava todas as expectativas. Hermógenes não era especialista em nada, ele era tudo. Universal, em seus movimentos desabrochava a cultura. Não andava com uma lanterna na mão, era ele a própria lanterna, independente e viva, a realçar e apresentar a alegria sem culpa de estar vivo.

Nunca ouvi Hermógenes fazer qualquer comentário sobre Epicuro, o filósofo grego nascido em Samos ou Atenas, 341 a. C., mas, certamente, ambos fizeram a mesma descoberta e Mestre Armojo andava carregado de filosofia de vida, pleno da idéia de felicidade e do prazer pelo simples reconhecimento de estar vivo e em comunhão com tudo o mais. Ele, de certa forma, tentou e conseguiu criar entre nós o “Jardim de Epicuro”, uma confraria que em Atenas de 306 a. C. reúne, revolucionariamente – além de homens -, mulheres, escravos e estrangeiros que difundem em livros, panfletos e cartas, as concepções de que a vida pode e deve ser vivida em alegria e felicidade mesmo que os problemas sejam mentalmente e fisicamente duros e difíceis. Através da luta de Armojo, a “Vila dos Confins”, um sítio por ele concebido para ser erigido na periferia de Vitória, de preferência na chapada do contorno, próximo ao aeroporto, contendo sínteses das principais edificações das vilas, lugarejos e seus equipamentos, como a moenda, a roda d’água, os quitungos, etc., ficou marcada indelevelmente em nossas mentes e corações, De muitos já ouvi referências a ela como se sua concretude fosse mais que uma vontade mas um fato passível, até mesmo, de ser comprovado pela fotografia e filmagem. Eis que sua necessidade, como ele previa, é mais forte que sua inexistência.

Hermógenes pugnou incansavelmente para, pelo seu próprio exemplo, difundir uma saudável crítica ética que buscava discernir entre o verdadeiro e o falso, buscando sedimentos eficazes para que pudéssemos compreender a sua máxima de que a vida pode ser vivida com paz e alegria. Essa era, no fundo, a sua revelação do mundo. Como diria Epicuro, 300 anos antes de Cristo, e Hermógenes, hoje e em qualquer data, “a sensação deve servir-nos para proceder, raciocinando, à indução de verdade que não são acessíveis aos sentidos”. Hermógenes Lima Fonseca nasceu em Conceição da Barra e se apaixonou pelo mundo. Cidadão íntegro, a luta pela justiça social o conduziu à política partidária e, em Vitória, onde já residia desde os nove anos, realizou um feito jamais alcançado por qualquer outro político; filiado ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), se candidatou à Câmara Municipal e, num eleitorado de 17 mil votantes, se elegeu com 6 mil votos, o que seria, hoje, mais do que o obtido pelos deputados federais mais votados. Mas esse feito memorável não o impressionou, indiferente ao poder, que não cultuava, muito pelo contrário, logo, logo se entregou com mais vigor nas lides culturais que ele entendia ser a base da formação dos homens e o caminho para a ampliação de suas satisfações. E aí, mais uma vez, sua estrela o acompanhou. Foi incansável e brilhante. Seus trabalhos correram mundo, Seu nome é legenda. Nada o perturbou. Seguiu vivendo na esteira das alegrias que plantava. Pesquisar o folclore, viajar pelas trilhas da cultura popular é tarefa para sábios. 

Os agentes dessas manifestações têm a prudência de não ir entregando seus conhecimentos a qualquer um que chega buscando suas luzes. É preciso ser transparente e puro para aliviar as resistências e perceber as sutilezas das primeiras notícias. Andar com Armojo pelos ermos das roças era um prazer indescritível. Parando nos botecos de madeira com balcão oferecendo um ou dois tipos de biscoitos em dois dedos de prosa mais do que todos os pesquisadores e antropólogos que tinham visitado aquele vilarejo ou cercania da fazenda até aquele dia. E assim ele ia se completando de energia bruta e lapidava tudo com os doces relatos de suas histórias. Armojo, que nasceu encantado, sempre morou na estrela-mãe que o recebe agora para todo o sempre, para que possamos recordá-lo com alegria que ele soube aflorar e nos oferecer com o coração aberto e a mente sempre ativa e lúcida dos sábios que justificam a existência do mundo humano. Obrigado e até breve, amigo.


Por: Orlando Bonfim Netto
Livro: Escritos de Vitória. 15 – Personalidades de Vitória, 1996
Compilação: Walter de Aguiar Filho, março/2012