Transcrevo abaixo um trecho da exortação apostólica do Papa João Paulo II sobre A FUNÇÃO DA FAMILIA CRISTÃ
LUZES E
SOMBRAS DA FAMÍLIA DE HOJE
Necessidade
de conhecer a situação
4.Uma vez que o desígnio de Deus sobre
o matrimónio e sobre a família visa o homem e a mulher no concreto da sua
existência quotidiana, em determinadas situações sociais e culturais, a Igreja,
para cumprir a sua missão, deve esforçar-se por conhecer as situações em que o
matrimónio e a família se encontram hoje(8).
Este conhecimento é, portanto, uma
exigência imprescindível para a obra de evangelização. É na verdade, às
famílias do nosso tempo que a Igreja deve levar o imutável e sempre novo
Evangelho de Jesus Cristo, na forma em que as famílias se encontram envolvidas
nas presentes condições do mundo, chamadas a acolher e a viver o projecto de
Deus que lhes diz respeito. Não só, mas os pedidos e os apelos do Espírito
ressoam também nos acontecimentos da história, e, portanto, a Igreja pode ser
guiada para uma intelecção mais profunda do inexaurível mistério do matrimónio
e da família a partir das situações, perguntas, ansiedades e esperanças dos jovens,
dos esposos e dos pais de hoje(9).
Deve ainda juntar-se a isto uma
reflexão ulterior de particular importância no tempo presente. Não raramente ao
homem e à mulher de hoje, em sincera e profunda procura de uma resposta aos
graves e diários problemas da sua vida matrimonial e familiar, são oferecidas
visões e propostas mesmo sedutoras, mas que comprometem em medida diversa a
verdade e a dignidade da pessoa humana. É uma oferta frequentemente sustentada
pela potente e capilar organização dos meios de comunicação social, que põem
subtilmente em perigo a liberdade e a capacidade de julgar com objectividade.
Muitos, já cientes deste perigo em que
se encontra a pessoa humana, empenham-se pela verdade. A Igreja, com o seu
discernimento evangélico, une-se a esses, oferecendo-lhes o seu serviço em prol
da verdade, da liberdade e da dignidade de cada homem e de cada mulher.
O discernimento evangélico
5. O discernimento realizado pela
Igreja torna-se oferta para orientação que salvaguarde e realize a inteira
verdade e a plena dignidade do matrimónio e da família.
Este discernimento atinge-se pelo
sentido da fé(10), dom que o Espírito Santo concede a
todos os fiéis, e é, portanto, obra de toda a Igreja(11), segundo a diversidade dos vários dons
e carismas que, ao mesmo tempo e segundo a responsabilidade própria de cada um,
cooperam para uma mais profunda compreensão e actuação da Palavra de Deus. A
Igreja, portanto, não realiza o discernimento evangélico próprio só por meio
dos pastores, os quais ensinam em nome e com o poder de Cristo, mas também por
meio dos leigos: Cristo «constituiu-os testemunhas, e concedeu-lhes o sentido
da fé e o dom da palavra (cfr. Act. 2, 17-18; Apoc. 19,
10) a fim de que a força do Evangelho resplandeça na vida quotidiana, familiar
e social»(12). Os leigos, em razão da sua vocação
particular, têm o dever específico de interpretar à luz de Cristo a história
deste mundo, enquanto são chamados a iluminar e dirigir as realidades temporais
segundo o desígnio de Deus Criador e Redentor.
O «sentido sobrenatural da fé» (13) não consiste, porém, somente ou
necessariamente no consenso dos fiéis. A Igreja, seguindo a Cristo, procura a
verdade, que nem sempre coincide com a opinião da maioria. Escuta a consciência
e não o poder e nisto defende os pobres e desprezados. A Igreja pode apreciar
também a investigação sociológica e estatística quando se revelar útil para a
compreensão do contexto histórico no qual a acção pastoral deve desenrolar-se e
para conhecer melhor a verdade; tal investigação, porém, não pode ser julgada
por si só como expressão do sentido da fé.
Porque é dever do ministério apostólico
assegurar a permanência da Igreja na verdade de Cristo e introduzi-la sempre
mais profundamente, os Pastores devem promover o sentido da fé em todos os fiéis,
avaliar e julgar com autoridade a genuinidade das suas expressões, educar os
crentes para um discernimento evangélico sempre mais amadurecido(14).
Para a elaboração de um autêntico
discernimento evangélico nas várias situações e culturas em que o homem e a
mulher vivem o seu matrimónio e a sua vida familiar, os esposos e os pais
cristãos podem e devem oferecer um seu próprio e insubstituível contributo. A
esta tarefa habilita-os o carisma ou dom próprio, o dom do sacramento do
matrimónio(15).
A situação da família no
mundo de hoje
6.A situação em que se encontra a
família apresenta aspectos positivos e aspectos negativos: sinal, naqueles, da
salvação de Cristo operante no mundo; sinal, nestes, da recusa que o homem faz
ao amor de Deus.
Por um lado, de facto, existe uma
consciência mais viva da liberdade pessoal e uma maior atenção à qualidade das
relações interpessoais no matrimónio, à promoção da dignidade da mulher, à
procriação responsável, à educação dos filhos; há, além disso, a consciência da
necessidade de que se desenvolvam relações entre as famílias por uma ajuda
recíproca espiritual e material, a descoberta de novo da missão eclesial
própria da família e da sua responsabilidade na construção de uma sociedade
mais justa. Por outro lado, contudo, não faltam sinais de degradação
preocupante de alguns valores fundamentais: uma errada concepção teórica e
prática da independência dos cônjuges entre si; as graves ambiguidades acerca
da relação de autoridade entre pais e filhos; as dificuldades concretas, que a
família muitas vezes experimenta na transmissão dos valores; o número crescente
dos divórcios; a praga do aborto; o recurso cada vez mais frequente à
esterilização; a instauração de uma verdadeira e própria mentalidade
contraceptiva.
Na raiz destes fenómenos negativos está
muitas vezes uma corrupção da ideia e da experiência de liberdade concebida não
como capacidade de realizar a verdade do projecto de Deus sobre o matrimónio e
a família, mas como força autónoma de afirmação, não raramente contra os
outros, para o próprio bem-estar egoístico.
Merece também a nossa atenção o facto
de que, nos países do assim chamado Terceiro Mundo, faltem muitas vezes às
famílias quer os meios fundamentais para a sobrevivência, como o alimento, o
trabalho, a habitação, os medicamentos, quer as mais elementares liberdades.
Nos países mais ricos, pelo contrário, o bem-estar excessivo e a mentalidade
consumística, paradoxalmente unida a uma certa angústia e incerteza sobre o
futuro, roubam aos esposos a generosidade e a coragem de suscitarem novas vidas
humanas: assim a vida é muitas vezes entendida não como uma bênção, mas como um
perigo de que é preciso defender-se.
A situação histórica em que vive a
família apresenta-se, portanto, como um conjunto de luzes e sombras.
Isto revela que a história não é
simplesmente um progresso necessário para o melhor, mas antes um acontecimento
de liberdade, e ainda um combate entre liberdades que se opõem entre si;
segundo a conhecida expressão de Santo Agostinho, um conflito entre dois
amores: o amor de Deus impelido até ao desprezo de si, e o amor de si impelido
até ao desprezo de Deus(16).
Segue-se que só a educação para o amor,
radicada na fé, pode levar a adquirir a capacidade de interpretar «os sinais
dos tempos», que são a expressão histórica deste duplo amor.