domingo, 25 de novembro de 2018

DA PUREZA QUE SE PERDE NO CAMINH0



André Luiz Soares
1º lugar Concurso Literário "Elza Cunha" Edição 2018
AMALETRAS

Por conta de vários fatores – quase sempre associados a barbáries – a modernidade fez com que muitas pessoas deixassem de acreditar na capacidade humana de construir um mundo melhor. Comigo não foi diferente. No entanto, ao contrário da maioria, as razões de meu atual estado de ceticismo são outras, pois não derivam de guerras; de bombas atômicas ou do uso de armas químicas; tampouco provêm dos vieses mais horrendos da política, nem mesmo do abismo social que se agiganta em praticamente todo o globo terrestre. Após mais de cinquenta anos bem vividos, o que me fez perder a fé na humanidade foi descobrir que hoje, nas festas de casamento, o bolo de noiva é falso.

Menino travesso que fui, jamais estive em uma festa para não tentar furar o bolo – afinal, havia até dedo nominado especificamente para esse fim. Então, apenas me deixava guiar pelo instinto natural. E não era o único! Driblar a vigilância das velhas senhoras e correr pela casa com o dedo sujo de glacê era o sonho de quase toda criança, ainda que tal feito pudesse render vergonhosos pitos e dolorosos puxões de orelha.

Daí meu grande espanto há poucos dias – em uma festa de casamento – quando, ao me aproximar sorrateiramente do gigantesco bolo, com o intuito descarado de furar sua belíssima cobertura, vivi a triste descoberta de que a atraente guloseima era de plástico. Naquele instante senti como se a pureza da infância fosse algo perdido há mil anos – entendi que eu era somente um velho, atropelado pelos implacáveis corcéis do tempo.

Foi tão nítida minha surpresa que, com pena de mim, uma moça uniformizada se aproximou sorrindo e – com formalidade britânica – disse-me que o bolo verdadeiro já estava cortado e seria servido em breve. Enquanto falava, ela apontava a mesa onde havia pequenas caixas semiabertas, milimetricamente distribuídas, contendo pedaços de bolo luxuosamente ornados – tudo tão perfeitamente geométrico... parecendo obra do Niemeyer.

Sorridentes, os noivos sequer tiveram o prazer de cortar o bolo e oferecer a primeira fatia a alguém especial. Com a faca entre as mãos, ambos apenas se limitaram a fazer dezenas de poses para os fotógrafos profissionais, os quais disputavam espaço com um enxame de caçadores de selfies munidos de smartphones. Só aí me dei conta do elevado grau de sistematização a que estamos submetidos – a festa de casamento se transformara em um rico segmento da poderosa indústria de eventos, na qual pouco ou nenhuma chance é dada à originalidade. Nesse ramo, novo mesmo é só o patamar dos valores: já quase igual a um PIB.

Em nome do caráter prático das coisas, sites especializados haviam disponibilizado listas de presentes que os noivos jamais receberiam, pois retirariam o valor correspondente em cash, bem ao estilo das melhores casas de câmbio. Do mesmo modo, o argumento estético obrigou as madrinhas a se vestirem praticamente iguais, como operárias uniformizadas na linha de produção. Empoleirados em suas mesas, os grupos de convidados quase não se misturavam, como é de praxe nas firmas de departamentos. Chamou-me a atenção a eficácia com que os garçons serviam os comes-e-bebes, levando a crer que o fordismo, o taylorismo e as teorias da qualidade total foram devidamente absorvidas por quem administra cerimoniais. Por fim, a rigidez do horário de acabar a festa bem lembrou os turnos das fábricas – sem direito a hora-extra.

De repente a música parou e as luzes se apagaram. E embora fosse sábado à noite, a festa de meio expediente terminou com o glamour de uma segunda-feira. Não muito diferente dos funerais, após breves despedidas e sem grande alarde todos se retiraram. Não sobraram bêbados cantarolando e arranhando um violão. Nenhuma tia velha levou restos de doces e salgados para degustar no dia seguinte. Nenhuma ex-namorada enciumada chorou ou deu vexame. Nenhum adolescente levou um soco ou deu seu primeiro beijo. Tudo muito bem planejado: sem arroubos e sem sal.

Na manhã seguinte – durante o café – alguém me perguntou se eu havia gostado da festa. Para não gerar polêmica, nem parecer chato, afirmei que sim. Mas, a bem da verdade, acordei cansado e melancólico... ainda inconformado por não ter furado o bolo.