segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

LEMBRANÇAS DO VOVÔ DUCA


Bodas de Ouro
Vovó Rosinha e vovô Duca
Foi uma pena que quando o meu avô Duca - Manoel Martins Pestana - acamado por muitos anos, ainda vivia, com bom apetite, registre-se, sem perder noite de sono e ainda botando alguma banca daquelas  tipo eu sou o homem da casa, - mesmo dependendo in totum de todo e qualquer cuidado, que com uma auxiliar, quando tinha, lhe eram proporcionados por nossa Verinha,  -  não tivéssemos um gravador ou mesmo tivéssemos tido a boa ideia de com lápis e papel na mão, ir anotando as quadras bem rimadas que ele continuamente repetia.

Não cheguei a saber se eram dos seus últimos anos, ou se as compusera antes, ainda dotado de boas faculdades mentais. Como se sabe, acontece depois de muito tempo com tantas pessoas, que tudo que decoraram ou sabiam, repetem com tanta exatidão.

Há um tempo ai, cheguei no apartamento da mamãe e sai procurando onde estava. Encontrei-a sentada na poltrona do seu quarto, dizia uma poesia. Fiquei à distância esperando que terminasse.

- Então, está recitando poesia?
- Eu estava aqui testando se ainda me lembrava da primeira poesia que recitei, ensinada por D. X.  Professora dela. Passaram-se mais de noventa anos.

Sem dúvida nenhuma, vovó Duca era um poeta.

O único “verso” que gravei foi o seguinte:

O Miranda deu na praia                                           atrás do Guririatrás                                                   Rosinha arranjou pra Laurides                                     Agora só falta para Luci.

Miranda foi um navio que afundou (1941) lá pelas imediações da Barra Nova, onde o Cricaré se projeta no mar, lugar de indizível beleza. Nunca foi içado, mas não se diga que em seus restos ainda restem algo que ainda se possa retirar.

Guriri é uma espécie de coco, ainda abundante nas praias mateenses, daí o nome do que hoje é também um populoso bairro da cidade de São Mateus e da famosa praia onde o verão fervilha. Rosinha é a vovó, esposa do véio Duca, Laurides uma das tantas moças que passaram “pela cozinha” da casa, assim como Luci.

Aquela, seduzida por alguma conterrânea daquele tipo que “tira empregada boa da casa dos outros” prometendo vida melhor, quanto mais no Rio de Janeiro, rumou para a Cidade maravilhosa e nunca mais deu notícias. Luci teve um filho de um dos rapazes que frequentavam a casa e ainda andou lá pela cidade, depois sumiu, quem sabe por onde terá ido andar. Assim sendo, a fala (do verso) é apenas de efeito, ou para completar a rima.

O fato é que o vovô era mesmo uma figura. E acabam de aflorar lembranças.
Ah, tinha lá meus dez anos, quando improvisamente, entro no quarto onde ele trocava a roupa, cantando inocentemente: Eu vi uma barata na careca do vovô, e quando ela me viu, bateu asas e voou

Ainda o ouvi perguntando: O quê, menina, o quê, menina?  mas eu já  estava longe e correndo até hoje...

Muitas vezes me chamou, me entregava uma caneca, uma moeda de reis, não sei quanto e mandava:      

- Vai ali, na loja do Zeca e compre uma dose de Parati pra mim.  – Era o Zeca Pinha, José Pinha, casado com uma sobrinha dele, dono de um sorriso ainda inapagado na minha lembrança, gozador, alegre, muito religioso. Não perdia uma Missa de domingo.

Acho que era uma cachacinha, qualquer, mas ele usava o nome de uma outra melhor, a Parati. Apenas um aperitivo.  Sentado à mesa, enquanto a comida não vinha, fazia um certo ritmo passando o garfo ao lado do prato. Para qualquer alimento, da banana à jaca, só comia com farinha.

Gostava de tirar uma soneca na rede e fazia aquela outra rede, a de pescar. Das suas idas ao Quadrado, para dias de pesca, não me lembro como era a saída, mas das voltas... como lembro! Ele montava um cavalo, dois ou três outros animais com cangalhas vinham repletas de siri e caranguejo já ferventados (ou cozidos), vermelhinhos que dava gosto, com o que nos deliciávamos ali mesmo.

Ouvi contar que era intrépido remador e não temia mergulhar para pegar o remo no fundo do rio, quando escapava de suas mãos.
A casa em que morou na Rua do Alecrim depois que veio com a família de mudança para a cidade, oriundo do Rio Preto, tinha um quintal enorme, findava do outro lado. Lá nos fundos, construiu uma pequena casa, onde tinha tudo que o entretinha: celas ou arreios, cangalhas, redes, apetrechos que lhe serviam ao ofício de pescador. Havia também uma rede para aquela tal soneca.  Era um lugar só seu, mas a habilidade de Rachid fez com que permitisse que ela estudasse lá. “Eu me sentia num escritório”, afirma a mana.

Lá no fundo do quintal, podia até mexer com alguma menina que passasse, Rosinha não tava vendo... 

Um bom homem, em virtude de queda de cavalo, puxava de uma perna, nada que o impedisse de fazer o que queria. Viveu para a família.

Vovó quase cega, ainda cuidou dele, quando adoeceu, enquanto viveu, dava até comida na boca, mas acabou que o precedeu na eternidade.

As lembranças fazem bem. Como é verdade que com ele vivemos os tais velhos tempos, belos dias...