sexta-feira, 27 de setembro de 2013

O CASULO

Reviro meu baú do tempo, nele encontro, joias preciosas e desafios vencidos ao longo dos anos. Faço as contas. Fico perplexa com os anos e prefiro não contá-los. 


Gosto da vida plena de gozo e sonho! Por isso vou seguindo trilhos estreitos e estradas largas que me dão oportunidades de colher flores e furar-me nos espinhos atrevidos. Sou feita da virilidade inventada e procriada nas artimanhas da vida dura. Seca, conforme a plantação dos cafezais das terras frias, na chegada de um verão impróprio.

Quente como a chaleira de ferro sobre as lenhas entrepostas no fogão de barro branco das antigas roças, com seus esquecidos habitantes. Sou a tempestade que extravasa as cumeeiras dos casebres quase sempre mortos, com seus moradores.

Nas entrelinhas da minha poesia às vezes suja e borrada de lágrimas, lembrei-me de ti, esperança latente, correndo nas vísceras dilaceradas. Permiti que ficasses acomodado na minha entranha e ali permanecestes por longos dias e meses de espera. Tu vieste afável como nasce o anjo em sua total plenitude e carência. Aprendestes os primeiros sons que se transformaram em palavras, os primeiros passos que engatinhamos juntos, as mesmas estradas sempre na mesma pequena sala. Dei-te alimentos especiais, alimentei-te com leite quente esvaindo dos bicos rachados com o gosto de sangue vivo. Dei-te os sonhos, versos e poesias, mas também dissabores de gestos e acenos de mãos contrapondo suas vontades. Sorrimos juntos e choramos as mesmas lágrimas, as primeiras decepções, pois participávamos do mesmo cotidiano. Nascestes majestosamente e fizestes retornar o fluxo sanguíneo que fora interrompido durante a sua morada em minhas entranhas coadjuvando com as nossas vitórias, conquistas e derrotas.


Quando mergulho, sobre as dobradiças do tempo, sinto o sabor da tarde em outono seco com suas folhas esvoaçantes, desprendendo das frondosas arvores. Sinto-me na metamorfose da vida. As nossas mais loucas vontades e experiências que na medida do tempo estancam, correm, saltitam e desligam-se do corpo como o próprio cordão umbilical, impedindo contatos atrelados, vidas interligadas, mantidas pelos elos afetivos profundos, porém, separados como abstratos voos de borboletas.


Tornei-me mulher, primeiro ao procriar e depois, com a poesia. Fiz-me forte como os arbustos que o vento praiano retorce, mas fincam raízes profundas nas terras do ninguém, dentro da minha própria colônia de pescadores. Enquanto viver, sentirei os aromas de peixe cozido, maresia e suor do pescador arredio. Colho assim, vida! 


Respiro a liberdade das redes soltas e esparsas todas as manhãs e tardes em meio ao mar, colhendo cardumes variados para o jantar da noite no Pontal. Na mesa farta com peixes de olhos arregalados em bandejas envelhecidas, o abacaxi floresce bem dentro do vaso com água, pois representa a esperança de dias melhores do labutar do braçal trabalhador desta região. Percebo com relutância, o tempo que nem quero contar. Prefiro a liberdade da minha juventude chegando sorrateira ao meu envelhecimento precoce. Penso que somos a fantasia de nossas próprias inverdades contadas, que podemos através dela, controlar os dias de sol, sabotar as horas noturnas, colorir as cores do arco-íris, colher os sonhos e sons e plantá-los em nossa poesia.

Bárbara Pérez, a escritora do mês na "Quinta Cult".
Fico assim, comovida, às vezes desacertada, tonta e naufragante em uma ilha distante e saudosa, talvez ainda possas acender o farol que irá iluminar minha alma nos trilhos da esperança. Quem sabe? Durante longos dias e noites ficaste encolhido dentro de mim, acolhido no gérmen do líquido amoroso que a carne em sã consciência cria e gera, devolvendo ao universo as partículas humanas que a terra consome indevida e sorrateiramente. No cansaço de meus dias, dei-te meus passos, meus sonhos, minhas palavras e gestos. Juntos, lutamos as primeiras batalhas dos “nãos” e dos contras. E das guerras imaginárias, fomos super-heróis aprendendo a driblar a rotina e seus manifestos contraditórios. Mais que fotos, casos e causos, me mostrei muito além da dor, na encenação do filme em cenas grandes e pequenas, coisas cotidianas de nós dois. Nasceste de minhas entranhas, que coisa estranha e não me pertence. Aprendi com a borboleta que ela nasce, cresce e voa mundo afora, cortando vento e poeira, sobre folhas e flores, às vezes decepadas por espinhos ingratos, também aprendi que ainda em seu casulo sofre dias e noites, ali, para se libertar, mas esse esforço se faz necessário para o seu amadurecimento, pois sem ele ela jamais voaria.

Como nos casulos, viveremos, desatando os nós e teias, refiro-me, portanto à poesia desfolhada em papel virgem, aprendi que devemos reaprender a brincar de amarelinha, soltar pipas, correr de pique esconde, molhar-se na chuva de verão, colher vento, capturar segredos, jogar amontoados de barro de chuva nas janelas fechadas, desvendar mistérios e treinar novamente os primeiros passos. As estradas podem não ser as mesmas e as pernas precisam de desafios. Como a primeira dentada na maça que estava pintada na xícara de porcelana da vovó, devemos recomeçar as mordidas ilusórias e até na linguagem e costume universal, desafiador dos tempos avançados. Nascestes de mim, como a borboleta presa em seu casulo encolhido na folha seca e úmida do sereno noturno, mas não me pertence.

A borboleta que ganha espaço e liberdade, somos assim, talhados de sonhos e sobressaltos. A qualquer momento o homem trará de volta a pequena criança de cabelos encaracolados para o meu colo, pois bem sei que a guarda dentro de ti como se estivesse ainda no interior do casulo escondido em sua alma cansada de dias sonoros e loucos. Que sejamos sábios em nossas buscas e esperas, pois somos como o casulo e a borboleta e explodimos para viver em plenitude e poesia. 

Bárbara Pérez.

Escritora, Presidente da Academia das Artes, Cultura e Letras de Marataízes e do Estado do Espírito Santo.