“A
cidade não para, a cidade só cresce
O
de cima sobe e o de baixo desce”
Nação
Zumbi, A cidade.
História urbana
Katherine Beauchamp
participante do Consurso Literário Elza Cunha
participante do Consurso Literário Elza Cunha
“Quando?” “Um dia”. “Mas que dia”? “Qualquer
dia desses”. “Mas, quando?” “Já disse mulher, um dia”. O homem empurrou a
esposa com brutalidade. A mulher caiu por cima de uma barraca de camelô. O
autônomo irritado e temeroso de perder a mercadoria gritou: “aí, xará, você vai
pagar pelo que quebrou”. A mulher chorava caída sobre os produtos de origem
chinesa. Um menino de rua, aproveitando-se da confusão, agarrou uma das
mercadorias que jazia no chão e correu. Apesar dos apelos do camelô, o menino
sumiu entre as pessoas que assistiam ao espetáculo que se apresentava em plena
tarde de segunda-feira entre o Conjunto Nacional e o Conic. Injuriado, o
vendedor atacou o homem: “viu, culpa sua. Ah, mas você vai pagar por tudo. Nem
que eu tenha de chamar a polícia”. “Vai chama a polícia, aproveita e chama a
Agefis, também, seu ambulante”. “Sou sim, mas trabalho com o meu suor”. “O que
mais você traz do Paraguai além dessas suas tralhas? Ein? O quê”? “Você está me
insultando. Eu sou camelô, mas sou honesto...” “Ah, tá, vai lá senhor
honestidade”. O homem levantou a esposa chorosa. “Vamos mulher e pare de
chorar, que nem te bati nem nada”. “Ah, não vai não. Antes tem de pagar pelos
meus danos”. O ambulante gritava. Em pouco tempo uma multidão reunia-se ao
redor da cena. “Não vou pagar por nada. Você nem tinha de estar aí. A via é
pública”. De repente, um grito soou ao longe: “olha o rapa”! O vendedor
recolheu os seus produtos antes que o prejuízo fosse maior. Saiu correndo com
uma multidão de ambulantes que temiam perder a mercadoria para os agentes da
Agefis. A discussão teve fim. E o homem respirou aliviado. “Viu o que você me
obriga a fazer”? A mulher murmurou algo de cabeça baixa. “O quê? Repete para que eu possa ouvir”! “Nada não,
desculpa”. “Ah bom. Pensava que queria me desafiar. Aí eu iria te ensinar a me
respeitar. Sou o seu marido. E quem paga a sua comida e a dos seus filhos, sou
eu”. “Nossos filhos”. Retrucou a mulher e um tapa estalou em sua face. “Quem te
ensinou a me responder, sua vagabunda”? A mulher com as mãos na face em chamas,
entre lágrimas sentidas, sibilou um pedido de perdão. O homem puxou-a violentamente
pelo braço a caminho da Rodoviária. “Vamos, que só me falta agora é perder o
ônibus por sua causa”.
“Chip
da Tim, já vem com bônus e internet”. Gritava uma vendedora. Mendigos disputavam
espaço com o comércio de produtos de procedência duvidosa e passageiros que
transitavam de lá para cá. “Iphone novinho. Vai querer, moça”? “Ela não vai
querer nada não, rapá. Ela não tem um pau para matar uma onça”. Zombou o
marido. A mulher abaixou a cabeça ressentida. O homem continuou com os
insultos. “Maldita hora em que fui casar com você. Mas, naquele tempo, você era
até bonita. Agora está aí: cheia de varizes, estrias e com um buxo enorme”. Ela
ouvia resignada todos os impropérios que o marido lhe dirigia. O homem puxava
violentamente a esposa pelo braço. “Se tivesse escutado minha mãe... Ela dizia:
“esta aí é uma imprestável, só vai dar prejuízo”. Dito e feito. Olha você. O
que você é? Nada. Só faz cozinhar e limpar e ainda faz muito mal”. As pessoas
já olhavam indignadas para a violência contra aquela pobre mulher. Uma senhora
bloqueou-lhes o do caminho. “Pode parar, não vou deixar você maltratar mais a
sua esposa”. “Sai da frente, velha, não se mete”. Respondeu o homem,
grosseiramente. “Não vou permitir. Solte o braço dela. Vamos já para a
delegacia da mulher”. Insistiu a senhora corajosamente. “Não te disseram que em
briga de marido e mulher não se mete a colher”? Alertou o homem à idosa e voltando-se
para a cônjuge: “Olha, sua vagabunda, pelo que me faz passar”! A idosa puxou a
mulher para desvencilhá-la dos braços do marido. A mulher não sabia o que
fazer. Queria a salvaguarda da senhora, mas temia apanhar quando voltasse para
casa. Afinal, tinha momentos que ele era bom com ela. Ficaram mais raros porque
estava desempregado. E a falta de dinheiro era ruim para todo mundo. Por isso
estava tão nervoso. Mas, tão logo encontrasse um trabalho fixo e não tivesse de
viver de bicos, tudo iria melhorar. Pelo menos era o que, à noite, ele a
prometia entre lágrimas sentidas. Não tinha coragem de abandoná-lo neste
momento tão difícil. Ele precisava do auxílio dela, só não conseguia admitir
frente as outras pessoas.
A
mulher, então, se pronunciou. “Ele é meu marido. Está nervoso, mas, normalmente,
não é assim”. A senhora ficou atônita. Não tinha como convencer à vítima da
perversidade de seu algoz. E a mulher continuou, ao lado do marido, o seu
caminho. “Ah, se você desse só um pio contra mim, só queria ver. Iria deixar
você toda roxa”. A mulher respondeu apenas que: “nunca faria nada contra ti.
Sei que os tempos estão difíceis. Eu não deveria ter insistido para saber
quando você levaria a Pauliane ao médico. É que ela está tão doentinha. Dói o
coração ver minha filha tão fraquinha naquela cama”. “Mulher, eu já não disse
que estou sem dinheiro? O médico vai mandar eu comprar remédios. E não tenho o
suficiente nem para o pão de cada dia, imagina para ir na farmácia com uma lista
enorme de medicamentos...” “Eu... Eu tenho medo que ela morra...” Disse a
mulher com a voz embargada. “Ela não vai morrer. Não aguentou até agora? Ela
suporta mais um pouquinho. Agora corre que o ônibus está saindo. Viu, no que dá
as suas confusões? Se a gente perder o ônibus, você vai ver”. Correram até o
veículo que já manobrava para sair da baia. Mas o motorista parou e as portas
abriram-se para que o casal embarcasse. Sentaram ambos, lado a lado, em um
banco frente ao cobrador. “Tomara que eu consiga aquela vaga de servente
naquela empresa. Se conseguir, vou levar a sua filha ao médico. Você entende,
não é? Tenho medo de não sobrar nada para nós todos. São oito pessoas naquela
casa. Você prefere ficar sem comer? Pois é isso que vai ocorrer. Então, vai
morrer todo mundo, não só a Pauliane...” A mulher de olhos baixos, murmurou:
“ela não vai morrer. Deus não vai deixar”. “Seu Deus é muito poderoso, não é?
Manda ele me arranjar um emprego. Então, toda a nossa situação muda de figura. Não
vou precisar mendigar pelo auxílio dos outros. Nem mesmo, aguentar insulto na
rua por causa de você”. “Eu rezo todos os dias, peço que Deus nos ajude e que
salve a minha menininha”. “Deus não faz nada por nós. Fica rindo do sofrimento
da gente aqui na Terra”. Resmungou o homem. “Não diga isto. Deus é tão bom para
nós. Estamos conseguindo viver apesar das dificuldades e tenho fé que você vai
ser chamado para aquele emprego” disse a esposa esperançosa. “Fé não é o suficiente, mulher. Não é”. Por
fim, completou o homem com olhos na paisagem que passava veloz pela janela do
ônibus.
Após
duas horas de viagem, o ônibus chegou à Santo Antônio do Descoberto. Ambos os
cônjuges desceram no ponto e andaram por algum tempo até avistarem o barraco
que alugavam. Entraram e cinco das seis crianças que possuíam correram para a
porta. Todas a falar ao mesmo tempo. A mãe pediu calma e o mais velho
pronunciou-se por todos. “A Pauliane não está bem. Ela não se mexe, nem
respira. A gente tem que ir com ela para o hospital”. A mãe correu para o
quarto onde menininha estava. E o que a mulher viu foi um o corpo hirto e
arroxeado sobre a cama. Sem esperanças, ela abraçou o corpo da filha e chorou.
Não questionou a vontade divina. Se tinha que ser daquele jeito, era porque
Deus pensou ser o melhor. O homem entrou no quarto. “E aí, morreu”? A mulher
balançou a cabeça, afirmativamente. “Porcaria, agora a gente tem que chamar a
polícia. Vai, veste uma roupa nela. Vamos levá-la ao hospital e dizer que ela
morreu quando procurávamos por socorro”. “Será que você não se ressente nem
pela morte de sua filha”? Disse a mulher sem sequer levantar a cabeça “Vai
agora agir cheia de sentimentalismos? Se a polícia pegar ela aqui, nós dois
vamos para a cadeia”. A mulher correu
para a porta, tranco-a e jogou a chave fora entre as grades da janela do quarto
das crianças. E gritou: “Edirlei, vá para a casa da vizinha e liga para a
polícia”. A mulher estava abraçada ao
corpo da menininha. O pai dizia que iria matar a mulher para ela acompanhar à
filha ao inferno. A mulher desafiou-o: “bate, vai, me bate, que além da morte
de sua filha você vai responder ainda por agressão”. “Você ficou doida, mulher”?
A mãe abraçada ao gélido corpinho da menina, disse: “eu e você matamos nossa
filha. Eu, por esperar tempo demais e você, por considerar qualquer coisa mais
importante que a sua família.
Enquanto você só agredia a mim, estava tudo
certo. Mas, ao desprezar a sua filha doente, você foi longe demais. É tempo de
darmos um jeito nisso”. “E os seus outros filhos, o que será deles”? “Agora
você pensa em NOSSOS filhos? Eles vão viver com a sua mãe. Está mais que na hora
de dar para ela o prejuízo que tanto dizia”. O homem ainda tentou arrebentar a
janela e a porta. Mas foi em vão. Em alguns minutos as viaturas estacionavam
frente ao barraco. O homem sentou-se sob a janela, olhou o corpo da filha nos
braços da mãe e chorou.
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