A MOSCA AZUL E A CELEBRAÇÃO DO
DESENCANTO
Resenha:
BETTO, Frei. A
Mosca Azul. Rio de Janeiro: Rocco, 2006. 317 p.
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Maria Newnum |
Nessa obra Frei BETTO faz um relato rico em detalhes sobre o Governo do
PT no período em que atuou como Assessor Especial do Presidente República e
Coordenador da Mobilização Social do Programa Fome Zero. Nas linhas
primárias, trata de localizar o leitor acerca de suas convicções pessoais, na
qual re-lembra a situação do Brasil da ditadura e o sonho que verteu sobre a
eleição de um presidente que viesse do povo. Fala de sua proximidade como o
Partido dos Trabalhadores na interface das Comunidades Eclesiais de Base e dos
Movimentos populares do Brasil; explica o motivo de nunca ter se filiado ao PT;
descreve seu primeiro encontro com Lula e a longa caminhada a seu lado:
“Durante 21 anos, Lula percorreu o país de ponta a ponta. Raro o município em
que não pôs os pés. Experimentou todos os meios de transporte, meteu-se em
localidades estranhas, cidades-fantasmas, ermos entroncamentos de trilhas
rurais. Acompanhei-o em caravanas enveredadas pelos grotões, levadas pelo
equívoco de que teriam os canfudós a mesma importância eleitoral que os grandes
centros urbanos.” (p.78-80).
Nas linhas seguintes, o autor justifica o que o levou dedicar-se a
eleição de Lula, narra suas impressões dos bastidores da campanha: “Foi no bojo
do agravamento da questão social que Lula ganhou as eleições. (...) Ainda que
militantes cobrassem dele um discurso ideológico que soaria bem aos ouvidos
acostumados à música ortodoxa (...), orientado por marqueteiros Lula demonstrou
bom humor e assumiu seu jeito próprio de ser, despido daquela marca registrada
de militante emburrado...” (p.85-86).
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Frei Betto |
BETTO enfatiza as limitações do governo petista marcada pela ausência de democracia econômica, pela crise ética e pelo
desencanto: “Estourada, em meados de 2005, a bomba do mensalão (...),
mergulharam na crise o Congresso e o PT; com eles, o país. A primeira reação da
direção petista foi no mínimo equivocada, ao negar as acusações, mesmo ciente
de que recorreram a métodos escusos. (...) Tentou-se tapar o sol com a peneira,
reprovando a instalação da CPI.” (p.114)
Para o autor, algo mais grave que a corrupção foi que PT deixou de
cumprir seu papel histórico e nesse sentido, ele distingue os papeis dos
“militantes e militontos”; ou seja, os primeiros capazes de tecer um olhar
crítico diante dos acontecimentos que denunciaram o envolvimento dos dirigentes
do partido no mensalão e, os últimos, presos ortodoxia do discurso mesmo e
apesar das crises éticas e acordões feitos pelo PT enquanto governo. Em seu
papel de “militante da política” ampla, a avaliação de BETTO reflete seu
desencanto e a causa do abandono do cargo de Assessor Especial do Presidente
República e Coordenador da Mobilização Social do Programa Fome Zero.
BETTO é enfático ao definir o que acredita ser a marca genuína do
caráter militante: “O que é ser militante de esquerda? É manter viva a indignação
e engajar-se em prol de mudanças que façam cessar a marginalização e a
exclusão. Segundo o critério de Norberto Bobbio, jamais aceitar a desigualdade
social como tão natural quanto o dia e a noite, como faz a direita. É uma
aberração o contraste ente a opulência e a miséria. Ninguém escolhe ser pobre,
sobreviver privado de bens elementares à dignidade, como alimentação, saúde,
educação, moradia e trabalho. O Bicho que Manuel Bandeira viu revirar o lixo, e
descobriu tratar-se de um homem, é o resultado de uma estrutura social injusta.
A riqueza de poucos faz a pobreza de muitos.” (p. 147 – 148).
A síntese de desencanto de BETTO fica evidente quando diz: “Não são os
prazeres que justificam a existência, tão fugidios e, levados ao extremo,
nefasto à subjetividade. Nem é o poder que traz em si a semente benigna de
nossa humanidade. É o sentido histórico, saber por que se vive, abraçar a morte
como descanso do guerreiro e não como deplorável acidente de percurso tão
temido por quem não ousa ser o que é e passa a vida dando voltas em torno de si
mesmo, com receio de aproximar-se de seu centro e assumir sua verdadeira
identidade”. (p.120 – 121).
E completa: “Um militante de esquerda pode perder tudo – a liberdade, o
emprego, a vida. Menos a Moral. Ao desmoralizar-se, enxovalha a causa que
defende e encarna. Presta um inestimável serviço à direita, a exemplo do que
ocorreu no escândalo dos financiamentos do PT, envolvido com dinheiro escuso
destinado a partidos e políticos, como veio à luz em 2005.” (p. 149).
Em todo o percurso da obra fica evidente o esforço do autor em
apresentar sua compreensão sobre o que vem a ser o genuíno da militância. “Há
pelego disfarçado de militante de esquerda. É quem se engaja visando, em
primeiro lugar, à sua ascensão ao poder. Em nome de uma causa coletiva, busca,
como prioridade, o interesse pessoal. E sente-se humilhado ao perder o poder ou
parcela dele. Ora o verdadeiro militante – como Jesus, Gandhi, Che Guevara – é
um servidor, disposto a dar a vida para que os outros tenham vida. Não se
orgulha de estar no poder, nem perder a auto-estima, nem perde a auto-estima ao
retornar às bases. Não se confunde com a função que ocupa.” (p.150). Nessa fala, é possível perceber a crítica de
BETTO, aos “Josés Dirceus” do PT.
Por outro lado, BETTO não excluí a responsabilidade dos movimentos
sociais, em especial a Igreja: “A fé faz da oração antídoto contra a alienação.
Orar é deixar-se questionar pelo espírito de Deus. Muitas vezes deixamos de
rezar para não ouvir o apelo divino a exigir a nossa conversão, isto é,
mudança de rumo de vida. Orar é permitir que Deus subverta a nossa existência,
ensinando-nos a amar assim como Jesus amou, libertadoramente.” (151).
Crítica: A Mosca Azul é o tipo de obra que
jamais cairá em desuso; em especial por proporcionar aos leitores, de forma
absolutamente singela e verdadeira, a importância e a grandeza do exercício do
olhar “de fora” e distanciando; especialmente e quando se está “por dentro” de
um projeto, partido ou instituição. Essa é uma tarefa que BETTO faz com
excelência “sem vergonha”. É comum a vergonha de criticar os sistemas ou grupos
dos quais que se faz ou se fez parte um dia. Mas BETTO mostra que essa tarefa é
imprescindível aos homens e mulheres que se colocam na sociedade como
cidadãos/ãs “distintos/as”. Como seres “políticos”, os indivíduos empenham
honra e seus nomes aos partidos, grupos e instituições. Óbvio e esperado seria
o exercício crítico e a contestação voraz, sempre que os princípios que um dia
os levaram ao agregamento, fossem quebrados. Todavia, poucos homens e mulheres
se prestam a esse exercício; seja por ostracismo, comodidade ou vergonha...
Essa é a grande mensagem de A Mosca Azul: Uma vez que emprestei meu nome, que
traduz “minha honra”, tenho a liberdade e o dever de reagir, sempre e quando o
projeto destoe dos princípios que um dia me levaram a comprometer-me com a
causa outrora descrita. Se os brasileiros/as tivessem a consciência
crítica de BETTO, hoje os partidos políticos e instituições diversas, os
tratariam com “aquele respeito venerável” que só os grandes merecem. Os
brasileiros/as não são respeitados/as porque ao contrário de BETTO, não reagem,
calam-se e continuam emprestando seus nomes e “honra”, eleição após eleição. A
leitura completa de A Mosca Azul é imprescindível para uma mudança de atitude
dos brasileiros; em especial das brasileiras, que são maioria em todas as
instâncias eletivas do país.
A Mosca Azul mostra que o “desencanto” não
deve ser sublimado; é necessário vivenciá-lo e denunciá-lo sob pena de ao não
fazê-lo, perder-se a própria identidade política e cidadã. O desencanto deve
ser celebrado como missa fúnebre, pois só assim será possível superá-lo e
encontrar novamente a esperança.
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