Há
poucos dias, uma criança me perguntou: qual seria a coisa mais importante do
mundo? Sem titubear, respondi: música! A expressão em seu rosto foi de
desapontamento. Bem provável que ela esperasse ouvir algo como saúde,
felicidade, paz e amor. Não resta dúvida que esses são aspectos fundamentais à
vida com qualidade; contudo, um tanto instáveis e passageiros – isso quando não
excludentes entre si. Quantas pessoas realmente conhecem paz ou amor? Já a
música oferta o ao espírito o sentimento confortável mais amplamente
democrático que – a despeito do ponto geográfico, da raça ou da classe social –
alcança a todos, indistintamente!
Considerando-se
que pássaros, baleias, águas e trovões, entre outros, contêm em si imensa
musicalidade, talvez a inspiração seja a natureza. Porém, prefiro supor que Zeus, apiedando-se da sofrida alma
humana, tenha permitido que a própria filha aliviasse as dores do mundo. Então,
Euterpe – musa do prazer e da música
– nunca mais nos abandonou.
Música
é algo tão divino, que nem precisa ter alta qualidade para agradar. Qualquer
caixinha de música – velha e desafinada – arranca deliciosos sorrisos das
crianças. Basta um radinho de pilha, em ondas curtas, para encher de alegria um
pobre casebre, no meio do mato. E quanto às religiões – do Budismo à Umbanda; do Cristianismo ao movimento Hare Krishna – duvido que alcançassem a
popularidade atual, se não houvesse belos cânticos na maioria de seus ritos.
Porque a música nos fala diretamente ao espírito.
Não
raramente, outras artes a ela se rendem. O que seria do cinema se a música não
conferisse toda sorte de sentimentos a cada uma das cenas? Será que mesmo as
expectadoras mais românticas teriam derramado tantas lágrimas – como, por
exemplo, o fizeram em Ghost ou Titanic – acaso a trilha sonora fosse
composta apenas de silêncio e sons ambientes? Não creio! E a dança... existiria
balé sem música? Possivelmente, sim – mas teria a mesma graça?
Música
é também força. Nos Estados Unidos, o rock,
o soul e o folk ganharam caráter universal e humanista ao unir vozes contra as
guerras. No Brasil, a música popular incomodou bravamente a ditadura militar.
Já o reggae fez com que, pela
primeira vez, todo o resto do planeta lançasse um olhar solidário ao tão
sofrido povo centro-americano.
Desconheço
contexto em que a música não possa se inserir. Nos esportes – seja para
incentivar o time do coração; seja para provocar o adversário – as torcidas
ostentam orgulhosamente seus hinos. Entre os apaixonados, é raro o casal que não
tenha eleito uma música como símbolo maior de seu amor: aquela que o faz mais
unido ou que torna suportável a saudade. Do mesmo modo, em locais comumente
tensos, como consultórios dentários, a música instrumental se constitui
artifício contra o medo da dor. E falando em dor, até a morte pede auxílio às
marchas fúnebres, para acentuar – gravemente – a tristeza do último adeus.
Por
todas essas tantas e intensas vertentes é que pergunto: quem, mesmo que por
breve momento, nunca sonhou ser um músico? Quem não cantou embaixo do chuveiro,
imaginando ser ídolo à frente de uma banda? Posto que a música, por seu caráter
celestial, até fabrica deuses – homens e mulheres, acima do bem e do mal,
eternizados por suas vozes únicas ou por suas formas ímpares de tocar um
instrumento.
Melhores
que os deuses gregos, os deuses da música não necessariamente precisam ser
fortes, belos ou profundamente sábios, para arrebatar centenas de milhões de
fãs delirantes e fiéis – seria a imperfeição humana, aperfeiçoando o sagrado? Talvez.
Pois a música inverte tendências, ensinando quão perigosa é a visão estática de
mundo. E foi por pensar assim que evitei, de forma contundente, falar a
respeito de gosto musical.
Há
muitos anos – ainda em Brasília –, trabalhando no escritório em plano sábado,
irritou-me alguém cantarolando, intermitentemente, ‘eu não sou cachorro, não / pra viver assim, tão humilhado...’. Sem
atentar à questão de direito, fui à sacada com o intuito arrogante de fazer
calar quem quer que fosse. Mas o que vi foi um maltrapilho, de aproximados
quinze anos, remexendo a lixeira da padaria e fartando-se de restos de comida,
enquanto cantava. Recuei envergonhado. Afinal, sempre fui grande admirador do
engajamento artístico. Guardava com orgulho meus ingressos de shows de Caetano Veloso, Chico Buarque, Milton
Nascimento, Mercedes Sosa entre
outros.
Então,
como eu poderia interromper aquele instante mágico? Na voz de Waldick Soriano, aquela música sempre
fez pouco sentido para mim. No entanto, cantada pelo menino de rua que comia
lixo à luz do dia – em um bairro rico da capital do País – tornara-se a mais
concreta e dolorida canção de protesto que eu já ouvira. Timidamente voltei à
sala convencido de que – não importando o estilo – a música sempre teria muito
a me ensinar.
E
se às vezes a música parece doente – escravizada por quem a produz sem
critérios, em nível industrial, até torná-la descartável – saiba que tal
conotação não a traduz nem limita. Porque, a despeito da roupagem que lhe foi
dada através dos séculos, a música tem sido sempre essa alma superior: advinda
do Olimpo; musa e mãe generosa que a todos conforta – nos melhores e nos piores
momentos.
André faz parte dos Correspondentes da AMALETRAS que no dia 18 de fevereiro em sessão solene do encerramento do Ano Literário "Elza Cunha" lhe conferirá menção honrosa pela sua intensa criação literária.