André Luiz Soares
1º lugar Concurso Literário "Elza Cunha" Edição 2018
AMALETRAS
Por conta de
vários fatores – quase sempre associados a barbáries – a modernidade fez com
que muitas pessoas deixassem de acreditar na capacidade humana de construir um
mundo melhor. Comigo não foi diferente. No entanto, ao contrário da maioria, as
razões de meu atual estado de ceticismo são outras, pois não derivam de
guerras; de bombas atômicas ou do uso de armas químicas; tampouco provêm dos
vieses mais horrendos da política, nem mesmo do abismo social que se agiganta
em praticamente todo o globo terrestre. Após mais de cinquenta anos bem
vividos, o que me fez perder a fé na humanidade foi descobrir que hoje, nas
festas de casamento, o bolo de noiva é falso.
Menino
travesso que fui, jamais estive em uma festa para não tentar furar o bolo –
afinal, havia até dedo nominado especificamente para esse fim. Então, apenas me
deixava guiar pelo instinto natural. E não era o único! Driblar a vigilância
das velhas senhoras e correr pela casa com o dedo sujo de glacê era o sonho de
quase toda criança, ainda que tal feito pudesse render vergonhosos pitos e
dolorosos puxões de orelha.
Daí meu
grande espanto há poucos dias – em uma festa de casamento – quando, ao me
aproximar sorrateiramente do gigantesco bolo, com o intuito descarado de furar
sua belíssima cobertura, vivi a triste descoberta de que a atraente guloseima
era de plástico. Naquele instante senti como se a pureza da infância fosse algo
perdido há mil anos – entendi que eu era somente um velho, atropelado pelos
implacáveis corcéis do tempo.
Foi tão
nítida minha surpresa que, com pena de mim, uma moça uniformizada se aproximou
sorrindo e – com formalidade britânica – disse-me que o bolo verdadeiro já
estava cortado e seria servido em breve. Enquanto falava, ela apontava a mesa
onde havia pequenas caixas semiabertas, milimetricamente distribuídas, contendo
pedaços de bolo luxuosamente ornados – tudo tão perfeitamente geométrico...
parecendo obra do Niemeyer.
Sorridentes,
os noivos sequer tiveram o prazer de cortar o bolo e oferecer a primeira fatia
a alguém especial. Com a faca entre as mãos, ambos apenas se limitaram a fazer
dezenas de poses para os fotógrafos profissionais, os quais disputavam espaço
com um enxame de caçadores de selfies
munidos de smartphones. Só aí me dei
conta do elevado grau de sistematização a que estamos submetidos – a festa de
casamento se transformara em um rico segmento da poderosa indústria de eventos,
na qual pouco ou nenhuma chance é dada à originalidade. Nesse ramo, novo mesmo
é só o patamar dos valores: já quase igual a um PIB.
Em nome do
caráter prático das coisas, sites
especializados haviam disponibilizado listas de presentes que os noivos jamais
receberiam, pois retirariam o valor correspondente em cash, bem ao estilo das melhores casas de câmbio. Do mesmo modo, o
argumento estético obrigou as madrinhas a se vestirem praticamente iguais, como
operárias uniformizadas na linha de produção. Empoleirados em suas mesas, os
grupos de convidados quase não se misturavam, como é de praxe nas firmas de
departamentos. Chamou-me a atenção a eficácia com que os garçons serviam os comes-e-bebes, levando a crer que o fordismo, o taylorismo e as teorias da qualidade total foram devidamente
absorvidas por quem administra cerimoniais. Por fim, a rigidez do horário de
acabar a festa bem lembrou os turnos das fábricas – sem direito a hora-extra.
De repente a
música parou e as luzes se apagaram. E embora fosse sábado à noite, a festa de
meio expediente terminou com o glamour de uma segunda-feira. Não muito
diferente dos funerais, após breves despedidas e sem grande alarde todos se
retiraram. Não sobraram bêbados cantarolando e arranhando um violão. Nenhuma
tia velha levou restos de doces e salgados para degustar no dia seguinte.
Nenhuma ex-namorada enciumada chorou ou deu vexame. Nenhum adolescente levou um
soco ou deu seu primeiro beijo. Tudo muito bem planejado: sem arroubos e sem
sal.
Na manhã
seguinte – durante o café – alguém me perguntou se eu havia gostado da festa.
Para não gerar polêmica, nem parecer chato, afirmei que sim. Mas, a bem da
verdade, acordei cansado e melancólico... ainda inconformado por não ter furado
o bolo.