Beatriz Abaurre
Estou nua.
Não sinto o
peso do meu corpo, frouxo e lasso, mas ao mesmo tempo, sensível e
assustadoramente atento.
As pálpebras
estão fechadas; não contraídas, mas apenas suavemente cerradas. Apesar disso,
pressinto o abissal escuro que me rodeia. Apenas uma difusa claridade, muito
branda, parece pairar de uma altura inimaginável. A consciência, extremamente
lúcida, aguça ainda mais todos os sentidos, a cada fração de segundo.
E preciso
situar-me com urgência. Sei, do fundo de minhas entranhas, que disso depende
minha sobrevivência.
Muito
lentamente, movo a cabeça. Meus cabelos, longos e finos, reagem com uma
ausência de pressa, que me causa estranheza e inquietude. Sem descerrar as
pálpebras, procuro determinar o motivo dessa reação retardada.
Não ouso
mover-me sem antes me situar nesse ambiente esdrúxulo e surreal. Mesmo porque não
devo permitir que o pânico se apodere de mim.
Atenta,
procuro ouvir. Ao longe, ouço um rumor, como o de uma brisa, que perpassa por
folhas secas; porém, não roça a nudez de minhas faces, meus seios, meu ventre,
minhas coxas. Apelo então, para o odor. Não há cheiro algum no ar, inteiramente
parado. Permaneço com os olhos fechados; recuso-me, terminantemente, a
abri-los.
Movo
novamente a cabeça, desta vez mais lentamente. Os cabelos embaraçam-se sem
pressa algumas mechas enleiam-se em meu pescoço e cobrem parte de meus seios.
Flutuo!
O coração se
agita um pouco mais. Estou nua e me mantenho na superfície de um líquido mais
denso que a água e morno, agradável, inodoro e, de certa forma, acolhedor. Não
devo, portanto, dobrar meu corpo, ou afundarei, mesmo que lentamente, sem saber
o que me aguarda no fundo.
Suspiro, um
pouco aliviada. Lembro-me afinal, de que a água é um elemento que domino
plenamente e com o qual convivo com cumplicidade e sem temores.
Ouso então
abrir e fechar a mão direita, que flutua, inerte. Uma substância viscosa
escorre, devagar, entre os dedos entreabertos, deslizando, lasciva e sem
nenhuma impureza que se pudesse perceber.
Dobro um
joelho: a perna afunda, encontrando a mesma densa resistência — o estranho
líquido como que cede, permissivo, acolhendo o pé e a perna, sem que nenhum
obstáculo se interpusesse nesse movimento.
Forço a
cintura para baixo e tenho a sensação de cumplicidade, ao mergulhar o quadril,
cuidadosamente, na mornidão escura e desconhecida, que me recebe, plácida e conivente.
Sei que, se mantiver o corpo nessa posição por mais tempo, ele afundará;
lentamente talvez, mas de maneira inexorável, me levando para as ignotas
profundezas. Volto a estender todo o corpo, mantendo-o na superfície. Preciso
de algum tempo para tomar a próxima decisão.
Percebo que
a pressa, ou qualquer movimento brusco, será inútil. Sou obrigada a ajustar-me
ao ritmo aquoso e lerdo, que me sustenta e aprisiona, e que parece impor sua
inquestionável vontade.
Mantenho-me
imóvel, obedecendo ao mais primitivo instinto: o da sobrevivência.
Preciso
pensar com cuidado e rapidez, pois o perigo parece apenas aguardar um mínimo
descuido para dominar inteiramente a situação. Nada me favorece: não sei onde
estou, como cheguei aqui, nem o que pretendem de mim.
Racionalizar.
Medir cada impulso. Algo me alerta para o tipo de líquido que mantém meus
músculos flácidos, como se ignorassem as ordens determinadas pelo meu cérebro,
que se mantém íntegro e, agora, em estado de extremo pânico.
Volto minha
atenção para a temperatura externa. Por lógica, a parte do meu corpo que
flutua, liberta, deveria estar mais fria do que a que se encontra imersa na
tepidez densa da viscosidade desconhecida, e que me enoja e atordoa.
Por um breve
instante, sinto-me mais do que flutuando; tenho a nítida sensação de estar
aprisionada, à mercê de algo estranho e misterioso. Afasto rápido este
pensamento. Não devo me apavorar, nem perder o controle dessa situação
insólita.
Levo minha
mão direita à boca e, meio nauseada, deixo aquela substância visguenta escorrer
sobre minha língua — ela penetra devagar, muito lentamente, através dos lábios
descontraídos, e escorrem, puro deleite, encobrindo minha língua e
infiltrando-se, Sem nenhuma urgência, por entre os dentes. Parece ganhar vida,
inchar e preencher toda a cavidade da boca. Tranco a garganta e deixo que as
sobras escorram, abundantes, pelas faces e pelo queixo. Mais um pouco e não
conseguiria deixar de engolir aquela gosma de origem desconhecida. Entretanto,
ela permanece como que moldada entre a língua e o céu da boca. Experimento seu
sabor: é imprescindível que isto seja feito. Apesar de deliciosa, não devo, não
ouso enfrenta, algo tão incrivelmente desconhecido. Tem um sabor acre,
levemente salgado, porém agradável e apelativo. Em outras circunstâncias,
talvez até me dispusesse a saboreá-la, mas todos os meus instintos insistem em
rejeitá-la, apesar de eu querer mantê-la um pouco mais dentro da boca, como se
seu sabor indistinto, instigasse meu interesse em descobriu sua essência e
origem.
Tento
desesperadamente cuspir, mas, como se tivesse vontade própria, a substância
torna-se mais e mais espessa, e seu gosto se modifica, tornando-se mais
apelativa ainda. Agora adocicada, acabo por relaxar os músculos da garganta e,
curvando-me a essa vontade que se impõe, cada vez mais obstinada, engulo toda a
massa aprisionada, que está prestes a me sufocar, sem qualquer complacência.
Percebo que só assim me livrarei dessa estranha gosma incômoda e persistente.
Cadencio
minha respiração, buscando encontrar novamente meu equilíbrio interior. Volto à
posição inicial, flutuando sem nenhum esforço, e assim permaneço por muito
tempo. Ao meu redor, o líquido permanece expectante, como que espreitando, em
sua quietude morna, meu próximo movimento.
O tempo
parece haver parado também, observador passivo de tão estranho mistério.
Por fim,
abro novamente os olhos. Distante, a tenda azul, muito escuro do céu noturno
parece descansar, distendida e plácida. Nenhuma lua, nenhum fiapo de nuvem,
apenas uma névoa prateada, luminescente, clareando aquele profundo buraco,
escavado em algum lugar desconhecido de todo o resto do mundo.
Paredes de
pedras brutas sobem, íngremes, traiçoeiras e abruptas, por metros e metros de
altura. Olho para os lados, para trás, para a direção de meus pés, com
movimentos o mais imperceptíveis possível.
Um arrepio
de horror, transpassa, de repente, meu corpo já em lento processo de
esgotamento.
Concluo,
finalmente, estar em alguma espécie de poço, escavado muitos quilômetros abaixo
da superfície, prisioneira de uma viscosidade untuosa, e à mercê do equilíbrio,
que pressinto selvagem, de forças desconhecidas e cruéis, amalgamada a essa
substância visguenta, e rodeada de maus presságios.
A bruma
prateada que encobre o imenso vão pedregoso paira como urna neblina estática,
em sua opalescência cúmplice e expectante.
O terror
percorre, uma vez mais, cada nervo de meu corpo. Nadar ou mover-me lentamente,
para chegar a que margem? Até onde minha vista alcança, apenas pedras
pontiagudas e cortantes limitam o imenso círculo do poço. Um grito congelou-se
na garganta contraída.
Como vim
parar aqui?
Fecho os
olhos por instantes que me parecem infindáveis. Inútil buscar uma explicação
lógica e plausível para tão horripilante situação. Sinto-me como que plasmada
em alguma espécie de visgo, que me mantém prisioneira, exatamente no centro
desse fosso abissal.
O pânico me
tolda a mente. Estou enganada: não sou prisioneira; estou liberta, não há
cordas, correntes, nós, lastros ou grilhões. Simplesmente, meio que flutuo, nua
e indefesa, porém dona de meu próprio corpo — a mente alerta, os sentidos
tensos, o terminais nervosos supersensíveis, à espera de um mínimo movimento,
de uma ínfima vibração. Nada parece ter vida. Porém, pressinto claramente a
expectativa pesada, quase obsedante, que me envolve.
Novamente
abro os olhos. A mesma terrível neblina, tênue e absolutamente imóvel, recobre
toda a extensão do buraco de pedras brutas e toscas. Lá em cima, muito acima,
um círculo de luz indica a superfície, para mim inatingível, onde o luar
deveria iluminar, neste exato momento, uma paisagem que me esforço em imaginar
relvosa, branda, acariciada pela brisa noturna e fresca. Lugar inatingível,
remoto, absurdamente longínquo.
O silêncio é
aterrador; lembro-me então de que meus ouvidos estão submersos nessa matéria
gelatinosa de origem obscura e traiçoeira. Levanto a cabeça e balanço-a
devagar. Como desde o princípio, o movimento é lento, e sinto o peso do cabelo
resistindo ao meu impulso. Se esperam de mim uma iniciativa, que seja. Resolvo
mergulhar. Preciso, a qualquer preço, descobrir o que me trouxe aqui, e porque
não consigo me libertar desse horripilante pesadelo, que me exaure as forças
rapidamente.
Sinto que,
se me deixar dominar pelo pânico, estarei irremediavelmente perdida. Sei também
que são mínimas as chances de me livrar desse fosso inimaginável, verdadeira
armadilha mortal.
Não muito
facilmente, viro-me de bruços e, incrivelmente, nada reage à minha mudança de
posição. Encho de ar os pulmões e, antes que o terror se apodere totalmente de
mim, curvo o corpo, dobro ligeiramente a cabeça, estico os braços à minha
frente, e inicio o mergulho rumo ao desconhecido. Vou rompendo a escuridão em
ritmo lento, não obstante o esforço para ganhar profundidade, observar o que
habita aquele fosso aparentemente infindo e retornar, a tempo de respirar, reiniciando
novo mergulho, ou desistir definitivamente, dependendo do que me aguarde nas
profundezas daquele pesadelo líquido.
Afundo,
conforme me permitem — sinto que toda a atmosfera está atenta e em extrema
expectativa. À medida que desço, tenho a sensação estranha e inexplicável de me
acomodar, de me sujeitar às regras que me são impostas, sem saber por que, nem
por quem. Incrivelmente, não sinto necessidade de respirar, nem cansaço algum
incomoda qualquer músculo do meu corpo em movimento constante e compassado.
Mantenho
meus olhos abertos. Alcanço agora uma água surpreendentemente límpida. Percebo
as pedras roliças, e não mais pontiagudas, que recobrem as paredes do poço.
Parece partir delas a claridade pálida e fantasmagórica que agora ilumina o
líquido que me envolve com a mesma tepidez; alguns organismos vivos parecem se
mover, entrando e saindo lentamente dos espaços entre elas. Flutuam também
outros seres, que lembram estranhos sargaços marinhos e algumas florescências
exóticas. Incríveis anêmonas pairam displicentes, mas como que curiosas, em sua
aparente indiferença.
Já não me
assusto mais com o fenômeno incrível da ausência total de oxigênio. Movo-me
mais à vontade, sempre lentamente, mas já sem sustos e sem aquele peso incomodo
e desconfortável.
Uma luz
esverdeada, começa a surgir de um musgo luminescente; parece ser o chão daquele
não mais infindo poço. Mantenho-me imóvel, e observo, numa espécie de transe
hipnótico, que sou comandada por aquela substância nova e de cor tão
estranhamente esverdeada.
Sei que
estou sendo puxada inexoravelmente para aquela espécie de leito musgoso, macio
e apelativo. Alguma força desconhecida move meu corpo, e vou me deixando
escorregar, até repousar, totalmente relaxada, naquele leito prazeroso e
acolhedor. Assumo, instintivamente, a posição fetal. enlaço com os braços meus
joelhos, e descanso minha cabeça em algo muito macio e suave.
Sinto que o
sono e um cansaço incontroláveis envolvem inteiramente o meu corpo. Tento
reagir contra essa mornidão, esse torpor sonâmbulo e protetor. Percebo, e não
reajo a isso, que tentáculos macios enlaçam meus membros, com cuidado e até
ternura. Deixo-me desenrolar, como uma folha nova que se abre por inteiro.
Agora totalmente estirada, penso nas larvas graúdas e nas longas e maleáveis
enguias que observei em determinado estágio de minha descida — seriam elas que
se enroscavam tão gentilmente em meu corpo totalmente permissivo? Foi apenas um
pensamento fugaz, que não se fixou em lugar algum da minha mente.
Minhas
costas, nádegas e coxas aprisionam-se no musgo luminoso. Percebo meus cabelos
flutuarem, como finos liquens, dançando em tomo de meu rosto, agora calmo e
plácido.
Afundam-me
mais um pouco, naquele leito complacente, e toco finalmente algo consistente e
absurdamente reconhecível. Por instantes, num esforço irracional, tento
relembrar a forma que me acolhe com a meiguice que inconscientemente recordo,
numa emoção quase extasiante.
Sorrio. Viro
meu corpo, para ser enlaçada por seus braços e suas pernas musculosas e longas.
Sou recebida num abraço em que o desejo, a ânsia, a paixão, proibidos há tanto
tempo, revivem com vigor, e me envolvem, quase me sufocando.
Foi uma
longa espera. jamais esperei reviver sensações já há tanto sublimadas e
aparentemente aprisionadas, esquecidas no lugar mais recôndito de meu ser.
As gordas
larvas melífluas e as longas enguias serpenteantes nem sequer me assustam, ao
invadirem meu corpo — que já não reage — enroscando-se, cruéis, em dolorosos e
indissolúveis nós e laços, que, parece, nos manterão assim, entrelaçados,
fundidos, para sempre plasmados, imóveis no limo esverdescente, não mais
daquele poço aterrorizante, mas sim de um sepulcro, onde nossos corpos saberão
para sempre encontrar a paz, por tanto tempo perseguida e só agora
reencontrada.
Imóveis,
bocas unidas, pele dissolvendo-se em pele, sinto, em pleno êxtase, algo rijo,
volumoso, obstinado, túrgido e insistente, penetrando fundo, cada vez mais
fundo, levando junto, para o mais íntimo de minhas entranhas, as enguias e
larvas, ansiosas, famintas, aflitas, buscando, em desespero, o mesmo
derradeiro, cruel e definitivo gozo.
Nossos
corpos, unidos, alcançam juntos o orgasmos que sempre queríamos mais longo,
mais profundo, e muito, muito mais extasiante. Um longo tremor, percorre nossos
nervos, nossos terminais sensitivos, fazendo fremir cada célula de nossa carne
faminta e insaciável.
Dentro de
mim, sinto o jorro abundante, prolongado, como que incessante, do sêmen sempre
ansiado e jamais saciado. Tem a duração de toda uma eternidade. Aos poucos, são
desfeitos os nós de pernas e braços; enguias e larvas se desenrolam. Com um
último resquício de esforço, afasto minha boca da sua. Olho seus olhos, verdes
e líquidos, como os liquens fluorescentes. Vejo neles desejo, paixão, loucura.
Mas nunca saciedade. Sorrio, enlevada.
Sobre o seu
corpo estirado, totalmente prostrado, percebo o louro, também estranhamente
esverdeado, de seus cabelos, os leves cachos emoldurando o rosto belo e
másculo.
Escorrego,
agora sem nenhuma ajuda, meu corpo exangue, para o lado do seu. Sempre fora
assim. Seu braço direito enlaçando-me um ombro, a carne ainda trêmula de
desejo. Porém, desta vez, permanece estranhamente imóvel, como que em profundo
torpor. Olho uma vez mais para ele. Nenhuma reação. Só o sorriso permanece
imutável. Descanso minha cabeça, também exausta, encaixada na carne macia entre
seu ombro e a clavícula, que parece terem sido moldados com a única finalidade
de acolhê-la nesse último repouso.
Nossos
ombros, quadris e coxas se tocam; nossas mãos, cujos dedos se entrelaçam
suavemente, estão pousadas sobre os macios e verdes liquens dos pêlos de nossas
coxas enfraquecidas.
Observo em
torno. Meus cabelos repousam, também pacificados, em meu ventre saciado. Um
líquido vermelho, muito rubro, escorre e começa rapidamente a encobrir nossos
corpos nus, misturando-se ao verde luminoso que nos banha com placidez, criando
um halo róseo à nossa volta.
Pressinto o
fim. Sei muito bem de onde flui tanto sangue: de cada um de nossos poros, tão
encharcados de luxúria que não podem mais ser contidos em nossos corpos
extenuados e rapidamente esgotados. Ele mantém em seu rosto o mesmo sorriso
cúmplice.
Olho para
cima. Sei que esta será minha última visão antes de nos perdermos para toda a
eternidade nesse fosso profundo. Só agora percebo o porquê de ter sido atraída
para ele e, finalmente, quem foi meu guia e condutor.
A névoa
prateada, incrivelmente se desfez. Toda a água que enchia o poço, antes escura
e visguenta, desapareceu. Agora sé encontra totalmente límpida, transparente e
muito leve. Nenhum peso nos oprime, apesar da imensa quantidade de água que
paira sobre nós. O róseo sangüíneo insiste em permanecer, cada vez mais
consistente e rubro.
No alto,
muito além da superfície, além das paredes de pedras pontiagudas e rascantes,
ainda consigo vislumbrar, já bem esmaecidas, as distantes e longínquas, muito
longínquas, estrelas da constelação de Órion.
Vitória,
agosto de 2000.