sábado, 31 de dezembro de 2016

ODE A EUTERPE


                          André Luiz Soares, vencedor de vários concursos Brasil a fora.

Há poucos dias, uma criança me perguntou: qual seria a coisa mais importante do mundo? Sem titubear, respondi: música! A expressão em seu rosto foi de desapontamento. Bem provável que ela esperasse ouvir algo como saúde, felicidade, paz e amor. Não resta dúvida que esses são aspectos fundamentais à vida com qualidade; contudo, um tanto instáveis e passageiros – isso quando não excludentes entre si. Quantas pessoas realmente conhecem paz ou amor? Já a música oferta o ao espírito o sentimento confortável mais amplamente democrático que – a despeito do ponto geográfico, da raça ou da classe social – alcança a todos, indistintamente!

Considerando-se que pássaros, baleias, águas e trovões, entre outros, contêm em si imensa musicalidade, talvez a inspiração seja a natureza. Porém, prefiro supor que Zeus, apiedando-se da sofrida alma humana, tenha permitido que a própria filha aliviasse as dores do mundo. Então, Euterpe – musa do prazer e da música – nunca mais nos abandonou.

Música é algo tão divino, que nem precisa ter alta qualidade para agradar. Qualquer caixinha de música – velha e desafinada – arranca deliciosos sorrisos das crianças. Basta um radinho de pilha, em ondas curtas, para encher de alegria um pobre casebre, no meio do mato. E quanto às religiões – do Budismo à Umbanda; do Cristianismo ao movimento Hare Krishna – duvido que alcançassem a popularidade atual, se não houvesse belos cânticos na maioria de seus ritos. Porque a música nos fala diretamente ao espírito.

Não raramente, outras artes a ela se rendem. O que seria do cinema se a música não conferisse toda sorte de sentimentos a cada uma das cenas? Será que mesmo as expectadoras mais românticas teriam derramado tantas lágrimas – como, por exemplo, o fizeram em Ghost ou Titanic – acaso a trilha sonora fosse composta apenas de silêncio e sons ambientes? Não creio! E a dança... existiria balé sem música? Possivelmente, sim – mas teria a mesma graça?

Música é também força. Nos Estados Unidos, o rock, o soul e o folk ganharam caráter universal e humanista ao unir vozes contra as guerras. No Brasil, a música popular incomodou bravamente a ditadura militar. Já o reggae fez com que, pela primeira vez, todo o resto do planeta lançasse um olhar solidário ao tão sofrido povo centro-americano.

Desconheço contexto em que a música não possa se inserir. Nos esportes – seja para incentivar o time do coração; seja para provocar o adversário – as torcidas ostentam orgulhosamente seus hinos. Entre os apaixonados, é raro o casal que não tenha eleito uma música como símbolo maior de seu amor: aquela que o faz mais unido ou que torna suportável a saudade. Do mesmo modo, em locais comumente tensos, como consultórios dentários, a música instrumental se constitui artifício contra o medo da dor. E falando em dor, até a morte pede auxílio às marchas fúnebres, para acentuar – gravemente – a tristeza do último adeus.

Por todas essas tantas e intensas vertentes é que pergunto: quem, mesmo que por breve momento, nunca sonhou ser um músico? Quem não cantou embaixo do chuveiro, imaginando ser ídolo à frente de uma banda? Posto que a música, por seu caráter celestial, até fabrica deuses – homens e mulheres, acima do bem e do mal, eternizados por suas vozes únicas ou por suas formas ímpares de tocar um instrumento.

Melhores que os deuses gregos, os deuses da música não necessariamente precisam ser fortes, belos ou profundamente sábios, para arrebatar centenas de milhões de fãs delirantes e fiéis – seria a imperfeição humana, aperfeiçoando o sagrado? Talvez. Pois a música inverte tendências, ensinando quão perigosa é a visão estática de mundo. E foi por pensar assim que evitei, de forma contundente, falar a respeito de gosto musical.

Há muitos anos – ainda em Brasília –, trabalhando no escritório em plano sábado, irritou-me alguém cantarolando, intermitentemente, ‘eu não sou cachorro, não / pra viver assim, tão humilhado...’. Sem atentar à questão de direito, fui à sacada com o intuito arrogante de fazer calar quem quer que fosse. Mas o que vi foi um maltrapilho, de aproximados quinze anos, remexendo a lixeira da padaria e fartando-se de restos de comida, enquanto cantava. Recuei envergonhado. Afinal, sempre fui grande admirador do engajamento artístico. Guardava com orgulho meus ingressos de shows de Caetano Veloso, Chico Buarque, Milton Nascimento, Mercedes Sosa entre outros.

Então, como eu poderia interromper aquele instante mágico? Na voz de Waldick Soriano, aquela música sempre fez pouco sentido para mim. No entanto, cantada pelo menino de rua que comia lixo à luz do dia – em um bairro rico da capital do País – tornara-se a mais concreta e dolorida canção de protesto que eu já ouvira. Timidamente voltei à sala convencido de que – não importando o estilo – a música sempre teria muito a me ensinar.

E se às vezes a música parece doente – escravizada por quem a produz sem critérios, em nível industrial, até torná-la descartável – saiba que tal conotação não a traduz nem limita. Porque, a despeito da roupagem que lhe foi dada através dos séculos, a música tem sido sempre essa alma superior: advinda do Olimpo; musa e mãe generosa que a todos conforta – nos melhores e nos piores momentos.
 
 
André faz parte dos Correspondentes da AMALETRAS  que no dia 18 de fevereiro em sessão solene do encerramento do Ano Literário "Elza Cunha" lhe conferirá menção honrosa pela sua intensa criação literária.