quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

ACREDITÁVAMOS POR RESPEITO


“Era assim mesmo, acreditávamos por respeito e confiança nos mais velhos, muito carinho e amor por nossos pais... Onde foram parar todos esses valores”?
Exatamente, estas são as palavras com as quais minha amiga, Ady Gomes Lencastre, comentou a crônica que escrevi ontem: “Crendices mateenses”. Citando várias, disse que acreditávamos sem perguntar, por exemplo, “por que beber leite e comer manga faz mal”?

Certamente, sentíamo-nos amadas. Jamais duvidamos do que ouvimos dos
lábios de mamãe. Era sempre dela a autoria das narrativas. Ainda que não enfatizássemos, é certo que ao nosso inconsciente não passava despercebido tudo que fazia, as diversas mulheres em que ela cotidianamente se desdobrava para que tivéssemos o essencial sempre a tempo e a hora. Ela nos defendia dos castigos de papai. Ela brigava se fosse preciso, com quem ousasse nos atingir.

E o carinho que dispensava a cada uma das irmãzinhas que nascia, até chegar a oitava. Ao irmãozinho, o sexto da constelação. Sem sentir nenhum ciúme, porque toda por quem era menor, não era menos em favor de quem já estava crescidinha. 

Uma vez fiz fogueira do montinho de lixo que o varredor deixou na rua. O carroceiro que recolhia, deu a maior bronca ao passar, só por isto. E vovó quis me bater. Sai correndo, entrava pela porta da frente, saia pela dos fundos, rodando pelo terreno vazio ao lado, vovó atrás. Ao passar por dentro de casa ouvia sua voz que me animava: corre! E claro, eu corria.  Acho que vovó se deu por vencida e quando voltei mais tarde, nada aconteceu.

Éramos mais inocentes? Claro que sim. Eu tinha perto de dez anos, quando Hilda nasceu. Estava conversando com umas coleguinhas, na frente da casa de Marivete. Nesse tempo, morávamos em Linhares. Marilene atacou a conversa da cegonha com repercussão entre todas nós, o que deixou aquele papo ainda mais animado.

Uma delas saiu-se com essa. “Tem vezes que é cegonha que traz o nenê, tem vezes que é uma garça”. Em seguida, afirmei convencidíssima: eu nasci com garça! Até hoje, não se apagou da minha lembrança o sorriso de Marilene, num rosto emoldurado por cabelos negros e lisos e que pegando nos meus, disse: “é por isto que seus cabelos são louros”...

Quem disse que não existia Papai Noel? Certa feita, começamos a escrever cartas para o bom velhinho. Mamãe assegurou que se colocássemos em determinado lugar, era dentro de casa mesmo, ele passaria para apanhar. Assim fizemos e ela dizia que era preciso que nós estivéssemos fora da casa. Claro que saíamos.

Passados alguns instantes, realmente, Papai Noel havia passado e levado as cartas. Encantadas com o prodígio, minhas irmãzinhas e eu redigimos outras cartas, colocávamos no local indicado por mamãe, saiamos, quando voltávamos, Papai Noel recolhera também essas outras.  

Nossa! Ficamos em estado de êxtase.

Pois é, a criança que fomos era assim. Não tínhamos discernimento aguçado por tantos apelos, nem sempre salutares, do mundo que não é mais aquele. Jogávamos peteca, cantávamos roda em noite de lua cheia, descalças, na rua de terra, sujava os pés de poeira... Nunca concluímos em verdade, onde foi parar a “bela condessa, língua de França, onde nasceu”.
Não tinha televisão. As estórias contadas à voz eram afazer típico das vovós. Se não tivesse tanta variedade não nos importava, ouvíamos as mesmas sem qualquer objeção.

Bem se vê que o mundo em torno do qual giravam nossos sonhos era pleno de mistérios, de figuras misteriosas nunca vistas, de personagens criados pela imaginação ou transmitido de geração após geração.

O lobisomem, gente, era o bicho da sexta-feira. Que aparecia, aparecia. Nunca o vi, mas quem disse que não o concebi: grande, feio, olhos pretos, peludo, dentes enormes, garras incríveis, aquela mão horrorosa de dedos longos demais. Estremecia só de pensar. 

À mãe só tratávamos de a senhora. A ela todo respeito, admiração, gratidão.
Experimente dizer que mentia, que não era o símbolo de tudo que de bom e melhor Deus nos podia dar. Ia dar briga, das feias.

Prosseguimos, uma vez sucessores, seremos sucedidos. E a vida continua, mesmo sem dar resposta ao que minha amiga perguntou: “Onde foram parar todos esses valores”?

Hum... foram substituídos por outros, não foram?


Vitória, 2 de dezembro de 2015 17:55