domingo, 6 de setembro de 2015

A MOSCA AZUL


A MOSCA AZUL E A CELEBRAÇÃO DO DESENCANTO

Maria Newnum*
Resenha:
BETTO, Frei. A Mosca Azul. Rio de Janeiro: Rocco, 2006. 317 p.

Maria Newnum
Nessa obra Frei BETTO faz um relato rico em detalhes sobre o Governo do PT no período em que atuou como Assessor Especial do Presidente República e Coordenador da Mobilização Social do Programa Fome Zero.  Nas linhas primárias, trata de localizar o leitor acerca de suas convicções pessoais, na qual re-lembra a situação do Brasil da ditadura e o sonho que verteu sobre a eleição de um presidente que viesse do povo. Fala de sua proximidade como o Partido dos Trabalhadores na interface das Comunidades Eclesiais de Base e dos Movimentos populares do Brasil; explica o motivo de nunca ter se filiado ao PT; descreve seu primeiro encontro com Lula e a longa caminhada a seu lado: “Durante 21 anos, Lula percorreu o país de ponta a ponta. Raro o município em que não pôs os pés. Experimentou todos os meios de transporte, meteu-se em localidades estranhas, cidades-fantasmas, ermos entroncamentos de trilhas rurais. Acompanhei-o em caravanas enveredadas pelos grotões, levadas pelo equívoco de que teriam os canfudós a mesma importância eleitoral que os grandes centros urbanos.” (p.78-80).


Nas linhas seguintes, o autor justifica o que o levou dedicar-se a eleição de Lula, narra suas impressões dos bastidores da campanha: “Foi no bojo do agravamento da questão social que Lula ganhou as eleições. (...) Ainda que militantes cobrassem dele um discurso ideológico que soaria bem aos ouvidos acostumados à música ortodoxa (...), orientado por marqueteiros Lula demonstrou bom humor e assumiu seu jeito próprio de ser, despido daquela marca registrada de militante emburrado...” (p.85-86).
Frei Betto
BETTO enfatiza as limitações do governo petista marcada pela ausência de democracia econômica, pela crise ética e pelo desencanto: “Estourada, em meados de 2005, a bomba do mensalão (...), mergulharam na crise o Congresso e o PT; com eles, o país. A primeira reação da direção petista foi no mínimo equivocada, ao negar as acusações, mesmo ciente de que recorreram a métodos escusos. (...) Tentou-se tapar o sol com a peneira, reprovando a instalação da CPI.” (p.114)
Para o autor, algo mais grave que a corrupção foi que PT deixou de cumprir seu papel histórico e nesse sentido, ele distingue os papeis dos “militantes e militontos”; ou seja, os primeiros capazes de tecer um olhar crítico diante dos acontecimentos que denunciaram o envolvimento dos dirigentes do partido no mensalão e, os últimos, presos ortodoxia do discurso mesmo e apesar das crises éticas e acordões feitos pelo PT enquanto governo. Em seu papel de “militante da política” ampla, a avaliação de BETTO reflete seu desencanto e a causa do abandono do cargo de Assessor Especial do Presidente República e Coordenador da Mobilização Social do Programa Fome Zero.
BETTO é enfático ao definir o que acredita ser a marca genuína do caráter militante: “O que é ser militante de esquerda? É manter viva a indignação e engajar-se em prol de mudanças que façam cessar a marginalização e a exclusão. Segundo o critério de Norberto Bobbio, jamais aceitar a desigualdade social como tão natural quanto o dia e a noite, como faz a direita. É uma aberração o contraste ente a opulência e a miséria. Ninguém escolhe ser pobre, sobreviver privado de bens elementares à dignidade, como alimentação, saúde, educação, moradia e trabalho. O Bicho que Manuel Bandeira viu revirar o lixo, e descobriu tratar-se de um homem, é o resultado de uma estrutura social injusta. A riqueza de poucos faz a pobreza de muitos.” (p. 147 – 148).
A síntese de desencanto de BETTO fica evidente quando diz: “Não são os prazeres que justificam a existência, tão fugidios e, levados ao extremo, nefasto à subjetividade. Nem é o poder que traz em si a semente benigna de nossa humanidade. É o sentido histórico, saber por que se vive, abraçar a morte como descanso do guerreiro e não como deplorável acidente de percurso tão temido por quem não ousa ser o que é e passa a vida dando voltas em torno de si mesmo, com receio de aproximar-se de seu centro e assumir sua verdadeira identidade”. (p.120 – 121).
E completa: “Um militante de esquerda pode perder tudo – a liberdade, o emprego, a vida. Menos a Moral. Ao desmoralizar-se, enxovalha a causa que defende e encarna. Presta um inestimável serviço à direita, a exemplo do que ocorreu no escândalo dos financiamentos do PT, envolvido com dinheiro escuso destinado a partidos e políticos, como veio à luz em 2005.” (p. 149).
Em todo o percurso da obra fica evidente o esforço do autor em apresentar sua compreensão sobre o que vem a ser o genuíno da militância. “Há pelego disfarçado de militante de esquerda. É quem se engaja visando, em primeiro lugar, à sua ascensão ao poder. Em nome de uma causa coletiva, busca, como prioridade, o interesse pessoal. E sente-se humilhado ao perder o poder ou parcela dele. Ora o verdadeiro militante – como Jesus, Gandhi, Che Guevara – é um servidor, disposto a dar a vida para que os outros tenham vida. Não se orgulha de estar no poder, nem perder a auto-estima, nem perde a auto-estima ao retornar às bases. Não se confunde com a função que ocupa.” (p.150). Nessa fala, é possível perceber a crítica de BETTO, aos “Josés Dirceus” do PT.
Por outro lado, BETTO não excluí a responsabilidade dos movimentos sociais, em especial a Igreja: “A fé faz da oração antídoto contra a alienação. Orar é deixar-se questionar pelo espírito de Deus. Muitas vezes deixamos de rezar para não ouvir o apelo divino a exigir a nossa conversão, isto é, mudança de rumo de vida. Orar é permitir que Deus subverta a nossa existência, ensinando-nos a amar assim como Jesus amou, libertadoramente.” (151).
Crítica: A Mosca Azul é o tipo de obra que jamais cairá em desuso; em especial por proporcionar aos leitores, de forma absolutamente singela e verdadeira, a importância e a grandeza do exercício do olhar “de fora” e distanciando; especialmente e quando se está “por dentro” de um projeto, partido ou instituição. Essa é uma tarefa que BETTO faz com excelência “sem vergonha”. É comum a vergonha de criticar os sistemas ou grupos dos quais que se faz ou se fez parte um dia. Mas BETTO mostra que essa tarefa é imprescindível aos homens e mulheres que se colocam na sociedade como cidadãos/ãs “distintos/as”. Como seres “políticos”, os indivíduos empenham honra e seus nomes aos partidos, grupos e instituições. Óbvio e esperado seria o exercício crítico e a contestação voraz, sempre que os princípios que um dia os levaram ao agregamento, fossem quebrados. Todavia, poucos homens e mulheres se prestam a esse exercício; seja por ostracismo, comodidade ou vergonha... Essa é a grande mensagem de A Mosca Azul: Uma vez que emprestei meu nome, que traduz “minha honra”, tenho a liberdade e o dever de reagir, sempre e quando o projeto destoe dos princípios que um dia me levaram a comprometer-me com a causa outrora descrita.  Se os brasileiros/as tivessem a consciência crítica de BETTO, hoje os partidos políticos e instituições diversas, os tratariam com “aquele respeito venerável” que só os grandes merecem. Os brasileiros/as não são respeitados/as porque ao contrário de BETTO, não reagem, calam-se e continuam emprestando seus nomes e “honra”, eleição após eleição. A leitura completa de A Mosca Azul é imprescindível para uma mudança de atitude dos brasileiros; em especial das brasileiras, que são maioria em todas as instâncias eletivas do país.
A Mosca Azul mostra que o “desencanto” não deve ser sublimado; é necessário vivenciá-lo e denunciá-lo sob pena de ao não fazê-lo, perder-se a própria identidade política e cidadã. O desencanto deve ser celebrado como missa fúnebre, pois só assim será possível superá-lo e encontrar novamente a esperança.



* Pedagoga, mestre em teologia prática, filiada ao um partido político, integrante do Movimento Ecumênico e do Grupo de Diálogo Inter-religioso de Maringá e Coordenadora do Café Teológico. Para comentar ou ler outros artigos acesse: http://br.groups.yahoo.com/group/LittleThinks/
http://www.espacoacademico.com.br - © Copyleft 2001-2008                                                                 É livre a reprodução para fins não comerciais, desde que o autor e a fonte sejam citados e esta nota seja incluída.