sábado, 28 de março de 2015

ESCALADA DE UM JUIZ

Encontrei casualmente este artigo, relendo-o, quis publicar aqui. 

        A maioria das coisas que valem a pena, geralmente, não chegam ao
conhecimento “das gentes”. Continua sendo verdade que tanto quanto “o barulho não faz bem, o bem não faz barulho”, por exemplo., se fazemos N coisas boas, ninguém elogia, ninguém toma conhecimento, quem toma, finge que não viu, mas se alguém tem a desdita de cometer um deslize, coitado...

        Nos últimos dois anos, o Tribunal de Justiça renovou de ao menos seis dos  seus vinte e um integrantes, o último a chegar lá, foi o Desembargador Arnaldo Santos Souza, que como sempre fizeram seus predecessores, ao tomar posse, também fez questão de lembrar as origens. E como é bonita e simples a origem do desembargador!

        Como se ele mesmo revisse em filme, sua trajetória, lembrou o casebre de estuque onde nasceu em Guarapari, na aldeia de pescadores. De um  pai “calafeteiro” o  que significava  preencher com cordão ou  estopa os espaços intermediários das tábuas na estrutura dos barcos; de uma mãe cujos  dias transcorria inteiramente presa aos trabalhos domésticos, administrando com sabedoria o pouco que tinha, para que nada a ninguém faltasse.

        Acostumado à contemplação dos horizontes vastos do mar, o menino via longe e empenhou-se nos estudos valendo-se de “bolsas” e foi com garra que um dia viu a hora de sua colação de grau no curso de direito, em tempo que ainda era privilégio de bem poucos. O incentivo de amigos levou-o ao concurso para juiz, função que  ocupou  vinte e seis anos de sua vida.

        Na alvorada do novo milênio, tornava-se Desembargador.

        Foi gratificante constatar o ânimo revelado para desempenhar a nova função, quando afirmou em seu discurso, da necessidade que “o Juiz seja sensível para compreender a realidade em que vive, desinstalando-se ante as mutações pelas quais passa a sociedade em um mundo que se globalizou”, daí porque,  “além de dominar a ciência jurídica,  o magistrado deve  adentrar o campo da sociologia, da filosofia, da psicologia o que lhe facilitará a realização de um interrogatório e  a subsequente  aplicação da pena. Hodiernamente, o juiz  não pode ser aquele ser isolado, distanciado do mundo, em uma redoma de cristal”.

        Revelou “a consciência da invariável frequência com que um magistrado, mais que aplicar, tem que suprir lacuna da lei”, o que é grande verdade, pois, “um juiz há de ser criativo”, não se pode julgar generalizando. Os homens e os fatos que lhe dizem respeito, ainda que com aparência de igual, com certeza divergem na essência. Combateu a súmula vinculante que considera “obstáculo impeditivo à normalidade e à liberdade de julgar”, com o que concordo, principalmente, porque as leis não são formas de dimensões delimitadas, implicando que a aplicação das mesmas se traduza em colocar ali o fato, se couber, coube o direito.

        Vali-me hoje de um discurso de posse, para demonstrar que habitar os píncaros e chegar a cargos de expressão não é privilégio de quem nasce em berço de ouro, mas de quem é obstinado e não foge à luta, de quem sabe que não se constrói uma sociedade fechando os olhos para a realidade, mas com a honestidade de quem reconhece os próprios erros e deficiências e se propõe continuar lutando. Sobretudo, de quem “entende que a democracia, o estado democrático de direito não se compadece com um judiciário frágil e sem expressão”.
Marlusse Pestana Daher
A GAZETA 08-11/06/01


quinta-feira, 5 de março de 2015

TRANSFIGURAÇÃO DE JESUS


Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus 

Naquele tempo, Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João seu irmão


e levou os, em particular, a um alto monte e transfigurou Se diante deles: o seu rosto ficou resplandecente como o sol e as suas vestes tornaram se brancas como a luz.   
E apareceram Moisés e Elias a falar com Ele.
Pedro disse a Jesus: «Senhor, como é bom estarmos aqui! Se quiseres, farei aqui três tendas: uma para Ti, outra para Moisés a  outra para Elias».   
Ainda ele falava, quando uma nuvem luminosa os cobriu com a sua sombra e da nuvem uma voz dizia: «Este é o meu Filho muito amado, no qual pus toda a minha complacência. Escutai O».
Ao ouvirem estas palavras, os discípulos caíram de rosto por terra a assustaram se muito. Então Jesus aproximou se e, tocando os, disse:
«Levantai vos e não temais». Erguendo os olhos, eles não viram mais ninguém, senão Jesus. Ao descerem do monte, Jesus deu lhes esta ordem: «Não conteis a ninguém esta visão, até o Filho do homem ressuscitar dos mortos».
Esta página de catequese, destinada a ensinar que Jesus é o Filho de Deus e que o projeto que Ele propõe vem de Deus, está construída sobre elementos simbólicos tirados do Antigo Testamento. Que elementos são esses?
O monte situa-nos num contexto de revelação: é sempre num monte que Deus Se revela; e, em especial, é no cimo de um monte que Ele faz uma aliança com o seu Povo.
A mudança do rosto e as vestes de brancura resplandecente recordam o resplendor de Moisés, ao descer do Sinai (cf. Ex 34,29), depois de se encontrar com Deus e de ter as tábuas da Lei.
A nuvem, por sua vez, indica a presença de Deus: era na nuvem que Deus manifestava a sua presença, quando conduzia o seu Povo através do deserto (cf. Ex 40,35; Nm 9,18.22; 10,34).     
Moisés e Elias representam a Lei e os Profetas (que anunciam Jesus e que permitem entender Jesus); além disso, são personagens que, de acordo com a catequese judaica, deviam aparecer no “dia do Senhor”, quando se manifestasse a salvação definitiva (cf. Dt 18,15-18; Mal 3,22-23).
       
O temor e a perturbação dos discípulos são a reação lógica de qualquer homem ou mulher diante da manifestação da grandeza, da omnipotência e da majestade de Deus (cf. Ex 19,16; 20,18-21).
As tendas parecem aludir à “festa das tendas”, em que se celebrava o tempo do êxodo, quando o Povo de Deus habitou em “tendas”, no deserto.

A mensagem fundamental, amassada com todos estes elementos, pretende dizer quem é Jesus. Recorrendo a simbologias do Antigo Testamento, o autor deixa claro que Jesus é o Filho amado de Deus, em quem se manifesta a glória do Pai. Ele é, também, esse Messias libertador e salvador esperado por Israel, anunciado pela Lei (Moisés) e pelos Profetas (Elias). Mais ainda: ele é um novo Moisés – isto é, aquele através de quem o próprio Deus dá ao seu Povo a nova lei e através de quem Deus propõe aos homens uma nova aliança.       

Da ação libertadora de Jesus, o novo Moisés, irá nascer um novo Povo de Deus. Com esse novo Povo, Deus vai fazer uma nova aliança; e vai percorrer com ele os caminhos da história, conduzindo-o através do “deserto” que leva da escravidão à liberdade.
Esta apresentação tem como destinatários os discípulos de Jesus (esse grupo desanimado e frustrado porque no horizonte próximo do seu líder está a cruz e porque o mestre exige dos discípulos que aceitem percorrer um caminho semelhante). Aponta para a ressurreição, aqui anunciada pela glória de Deus que se manifesta em Jesus, pelas vestes resplandecentes (que lembram as vestes resplandecentes dos anjos que anunciam a ressurreição – cf. Mt 28,3) e pelas palavras finais de Jesus (“não conteis a ninguém esta visão, até o Filho do Homem ressuscitar dos mortos” – Mt 17,9): diz-lhes que a cruz não será a palavra final, pois no fim do caminho de Jesus (e, consequentemente, dos discípulos que seguirem Jesus) está a ressurreição, a vida plena, a vitória sobre a morte.       



Uma palavra final para o desejo – manifestado por Pedro – de construir três tendas no cimo do monte, como se pretendesse “assentar arraiais” naquele quadro. O pormenor pode significar que os discípulos queriam deter-se nesse momento de revelação gloriosa, ignorando o destino de sofrimento de Jesus. Jesus nem responde à proposta: Ele sabe que o projeto de Deus – esse projeto de construir um novo Povo de Deus e levá-lo da escravidão para a liberdade – tem de passar pelo caminho do dom da vida, da entrega total, do amor até às últimas consequências.

segunda-feira, 2 de março de 2015

CARTA A ANTONIETA

A Acadêmica, Mestre e doutoranda Karina de Rezende Tavares Fleury coordena o Ano Literário Maria Antonieta Tatagiba da Amaletras.  Na abertura dirigiu-lhe a seguinte carta, lida pela acadêmica, mestre e Doutora Renata Bonfim.

Vila Velha, 27 de fevereiro de 2015.
Querida amiga,

foi em 2005 que ouvi falar de você pela primeira vez. O professor Francisco Aurelio Ribeiro escreveu seu nome no quadro junto ao de outras dez escritoras capixabas conhecidas no passado, mas totalmente desconhecidas de nós, imagina, de nós estudiosos da literatura!
Antonieta


De imediato, afeiçoei-me ao seu nome: Tatagiba... quando eu era criança, meu pai jogava futebol com alguns rapazes da família Tatagiba... sempre achei esse nome engraçado... isso foi lá em São José do Calçado, nos idos de 1970. Além disso, seu prenome me remete à Maria Antonieta, austríaca que se tornou a última rainha da França e porque, dentre outras coisas, usou a moda como forma de se impor naquela sociedade, perdeu, literalmente, a cabeça! Sabia que a rainha e a nossa Maria Leopoldina, a mulher de D. Pedro I, eram parentes distantes? Ambas são da família dos Habsburgo!
Karina Fleury
Pois então, desde essa inesquecível aula ministrada pelo Francisco Aurelio, na UFES, dediquei-me a conhecer melhor a sua vida e obra, Antonieta. Ainda me lembro das palavras do professor: “Esta mulher precisa ser estudada!”. Não hesitei: levei você para dentro da minha casa. Seu único livro, Frauta Agreste (1927), tornou-se meu objeto de estudo no mestrado. Sua foto, retirada da Revista Vida Capichaba, estampava a parede no meu escritório. Rafael, meu filho que então contava com quase 2 aninhos, quando perguntavam: “quem é essa mulher aí?” Ele dizia: “Antonieta, uai!”.
Preencher os vazios que o tempo deixou na sua biografia, impulsionou-me rumo não só ao seu passado, mas também ao meu. Voltei a São José do Calçado, fui a São Pedro do Itapaboana, conversei com muitas pessoas. Entrei na casa onde você viveu com sua família depois de casada. Fui buscar seu túmulo no cemitério local... infelizmente, constatei que o tempo também havia apagado seu nome daquele sagrado solo. Busquei contato com pessoas de sua família. Dona Stael, seu Ión, imagina, Geraldo, seu filho que ainda era tão pequeno quando você partiu, me enviou o seu livro, que guardo com tanto amor. Era tamanha a alegria deles ao saberem que, enfim, estávamos reconhecendo o seu valor como poetisa, a primeira a publicar livro no Espírito Santo. Desenvolvi projetos sobre sua vida e obra com professoras de escolas da rede pública e privada, em Vitória. Dei palestras. Você foi homenageada numa das edições do Bravos Companheiros e fantasmas, seminário sobre literatura capixaba. Publiquei na Coleção Roberto Almada: Alma de Flor. Encontrei a antiga rua que levou seu nome no bairro Jucutuquara. Na Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, resgatei das páginas de O Jornal, o seu único conto: “A cruz da estrada”! Apresentei minha dissertação, em 2008, e a publiquei com o título: Maria Antonieta Tatagiba: vida e obra. Quanta emoção!
Neste ano de 2015, que faz 120 anos da data de seu nascimento, seu nome volta a brilhar graças à Marlusse Pestana Daher, cidadã mateense, presidente da AMALETRAS e membro de AFESL. Sabendo da sua importância como precursora das letras capixabas, depois de ter escutado eu dizer num evento de literatura aqui em Vitória que eu gostaria muito de ver seu livro reeditado, Marlusse convidou Renata Bomfim, Sonia Rita Sancio Landrith e a mim para, juntas, pensarmos um projeto que ficará nos anais da história de nossa terra. Trata-se do Ano literário Maria Antonieta Tatagiba, que levará a tantas outras pessoas o primor de seus textos e o conhecimento de sua curta, porém, intensa trajetória de vida.
Costumamos dizer que o povo brasileiro tem memória curta, mas não acredito nisso. Penso que a memória se constrói das relações que se estabelecem entre os indivíduos. João Cabral de Melo Neto traduz bem o meu sentimento:
Um galo sozinho não tece uma manhã: 
ele precisará sempre de outros galos. 
De um que apanhe esse grito que ele 
e o lance a outro; de um outro galo 
que apanhe o grito de um galo antes 
e o lance a outro; e de outros galos 
que com muitos outros galos se cruzem 
os fios de sol de seus gritos de galo, 
para que a manhã, desde uma teia tênue, 
se vá tecendo, entre todos os galos.
É na coletividade que as lembranças, ainda que individuais, se reestruturam e se tornam coletivas. Professor Francisco plantou a sementinha, eu a colhi. Replantei-a. Outros a colheram e assim sucessivamente.
Sim, é verdade, a história é feita de esquecimentos. Mas é certo também que, de tempos em tempos, um sonho deixará de ser pessoal e contagiará outros e o passado será (re)atualizado, e o velho será reinscrito na história como novo.
E então, Antonieta, você revive, entoando seus versos em nossos corações, ensinando-nos que a literatura é uma encantadora viagem de descobertas sem ponto final.
Até a próxima parada,

Karina Fleury.