terça-feira, 4 de novembro de 2014

TIA, ME DÁ UM TROCADO

Roupinhas surradas que já não estão limpas revelando ausência de cuidados o que se pode traduzir no fato de sorrateiramente ter deixado a casa há muitos dias ou ter sido constrangido a tal gesto pelas tantas faltas do absolutamente indispensável que ali predomina e cuja lista, não se exclui, pode ser encabeçada pelo amor.

Sentado na calçada da Igreja catedral da cidade, com os cotovelos sobre os joelhos, mãos sob o queixo sustenta a cabeça ligeiramente inclinada. Os olhos fixam qualquer ponto do asfalto sob seus pés. Terá não mais que oito ou nove anos. Pés descalços e muito sujos.

Estranho que ao passar por ele, não esboce o mínimo gesto, sequer me faz ouvir o clássico pedido: Tia, me dá um trocado.

Prossigo pensativa enquanto me bombardeio de inúmeras interrogações, para as quais se sucedem outras tantas respostas. São todas já feitas, de origem já conhecida, respondidas, com soluções discutidas, leis para elas previstas, descaso que retarda por em prática o que é devido, omissão tornada hábito e continuidade do que acabara de ver.

Atordoada pela cena, no entanto, prossegui meu caminho, quando de repente me apercebo de que não fui samaritana. Aquela criança não obstante os poucos anos vividos já viveu uma história de sofrimentos, de privações de desconforto, já levou muitos açoites da vida.

Quando se quis comprometer todos os responsáveis, consignou-se naquele que é considerado pelos desavisados, um mau, mas para quem conhece a fundo o problema e examina os fatos pelos seus diversos ângulos, sabe que tem tudo para dar certo, mas que não é observado também, o Estatuto da Criança e do Adolescente.

Prevê no seu Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.

Ai está não é tão difícil assim, sobretudo sua efetividade não depende de dinheiro, como condição primordial para valer.

Outro legislador, esse o mais Sábio, também promulgou um mandamento: deixai vir a mim as criancinhas,  ou dai-lhes a vida que compete de sua parte do resto me encarrego Eu.

Entrementes, decido pela volta e retomo a caminhada inversa até o ponto onde a vi e a poucos metros constato dorida, ela já se fora, prossigo um pouco mais a frente e a decepção é ainda maior. Agora encolheu-se ainda mais e chora. Ao toque da minha mão no seu pequeno ombro levanta a cabeça e vejo que tem na face a marca de uma bofetada violenta. Depois de muita insistência, tenho a resposta. Alguém passara por ali e lhe dera uma moeda de um real, um outro garoto viu e mal a pessoa se afastou, toma-lhe o dom além de espancá-lo.

Abrindo a bolsa dei-lhe o que lhe foi retirado, mas ele continua chorando e se encolhe ainda mais.

Como é dura a vida! Não se pode imputar-lhe nenhuma culpa ou gesto que merecesse semelhante sorte...


Fiquei sem ação e agora para concluir esta crônica, também não sei onde foram parar as palavras...