domingo, 2 de outubro de 2011

UMA GRANDE JUÍZA

Juíza cabo-verdiana Maria das Dores
MARIA DAS DORES DENUNCIA

Podia ter sido jornalista, filósofa, pedagoga ou médica, mas o Direito foi o curso que escolheu, em 1978. Porque era o que melhor se adequava aos seus intentos. Altruísta e ativista pelas causas dos direitos humanos em Cabo Verde, Maria das Dores Gomes, juíza e presidente da Associação Cabo-verdiana das Mulheres Juristas (ACVMJ), falou ao Já, sobre o seu percurso e da situação da Justiça no nosso País

JÁ – É jurista, porquê? Por que não médica ou engenheira?

Maria das Dores Gomes (riso) – É uma boa pergunta. Venho do período em que Cabo Verde se tornou independente. Mas antes, com a revolução de 25 de Abril, já aparecia no liceu, ao lado dos meus colegas, na luta pela causa da liberdade e do bem-estar do outro. Na minha localidade, em S. Vicente, embora ainda adolescente, deparava sempre com o bichinho do altruísmo. Ou seja, de ajudar o outro. Por isso, achei que a melhor forma era estar num espaço como este, a aplicar o Direito. Desde logo, porque dizia que, um dia, teria que ser activista dos direitos humanos, para defender as mulheres. Mas, para isso, achava que era necessário conhecer a lei e saber interpretá-la. Foi assim que, em 1978/79, estava quase a entrar para o Jornalismo, decidi fazer o curso de Direito, tendo sempre como pressuposto a defesa dos direitos, das liberdades e das garantias dos cidadãos.

JÁ – Sente-se feliz na escolha que fez da profissão, ou nem por isso?

MDG - É a carreira que escolhi. Confronto-me com várias colegas que me perguntam: mas o que é que tu estás fazer na magistratura? Respondo-lhes sempre: estou nesta profissão porque gosto, mas também é uma das formas que encontrei para ajudar o outro na defesa dos seus direitos e liberdades.

JÁ – Como é que vê a Justiça no nosso País?

MDG - A situação da Justiça cabo-verdiana é deveras complexa. Desde logo, ela não é célere, não há respeito pelos magistrados e qualquer pessoa fala mal deles, sem conhecer as condições em que trabalham. Por exemplo, ninguém procura saber como é que vivem os magistrados, quanto é que auferem, como é que está o juiz que trabalha num determinado processo, quais são, e em que condições estão, as infra-estruturas que nós temos. Ninguém vê isso. Só se pensa no magistrado como uma pessoa que está no tribunal para fazer justiça e que, por isso, devia agilizar os processos, para dar respostas às demandas judiciárias. Até há quem pense que os magistrados ganhem muito bem, o que é uma pura mentira. Só para ter uma ideia: o nosso salário, às vezes, sequer chega ao valor de um requerimento feito por um advogado da praça.


SALÁRIOS CONGELADOS HÁ 14 ANOS

JÁ – Considera que os magistrados cabo-verdianos ganham mal?

MDG - È claro que ganhamos muito mal. É do domínio público que os magistrados cabo-verdianos auferem um salário que não dignifica a classe. A nossa grelha salarial é de 1996. Portanto, há 14 anos que os salários dos magistrados não registam quaisquer aumentos. Salvo o subsídio de exclusividade, que foi aumentado de 25 para 40 por cento, se a memória não me atraiçoa. A título de exemplo: o meu salário atual é o de há 14 anos. Fixado aquando da publicação do novo Estatuto dos Magistrados. Portanto, como lhe disse há pouco, estou nesta profissão por amor à camisola. Eu gosto daquilo que faço; se fosse por dinheiro, digo-lhe com toda a sinceridade, não escolheria esta carreira. Inclusive tive um interregno, entre 2006 e 2008, quando estive em Timor-Leste, no quadro de um concurso das Nações Unidas, que ganhei, para trabalhar naquele país, como juiz internacional e na formação dos magistrados. Só voltei por razões pessoais e porque o meu País falou mais alto. Fosse por dinheiro, continuava lá e a ganhar muito bem. Não se compara o que se ganha, a esse nível, com o salário dos magistrados em Cabo Verde.
JÁ – Hoje fala-se muito da equidade do género e do seu contributo no processo do desenvolvimento de Cabo Verde. Como é que vê a participação da mulher na magistratura cabo-verdiana?

MDG - No capítulo da Justiça, em Cabo Verde, nós estamos muito bem representadas. Eu diria mesmo que estamos em paridade com os homens. Até não sei se não estarão mais mulheres que homens, no âmbito do exercício das funções na Justiça. Penso que, a esse nível, a questão do género não se coloca. Mesmo a nível dos magistrados estamos mais ou menos equilibrados. Já no exercício da advocacia vejo mais mulheres, aqui no tribunal, que homens. Embora reconheça que, em outros cargos de relevância para País, ainda existam poucas mulheres. Mas, veja, por exemplo, a figura constitutiva do Supremo Tribunal de Justiça. Temos três mulheres contra quatro homens. Portanto, são sete membros e três são mulheres. Contudo, este é um caso excepcional, vamos a ver se isso continua.


BAIXO NÍVEL ACADÉMICO É FACTOR DA MOROSIDADE DA JUSTIÇA

JÁ – Retomemos a situação da morosidade da nossa Justiça. Na sua perspectiva, enquanto magistrada judicial, o que é que falha na Justiça cabo-verdiana?

MDG - Quando se fala da Justiça, é preciso não esquecer que nos referimos a todos os atores a ela inerentes. Estamos a falar da sociedade em si, da polícia e dos tribunais. Justamente, porque é a boa articulação entre estes três agentes que torna a Justiça possível e célere. Dou-lhe um pequeno exemplo: um cidadão que apresenta queixa na polícia e espera que esta a conduza ao Ministério Público para que possa haver julgamento, e a autoridade policial não faz o seu trabalho. É óbvio que, neste caso, o cidadão sente-se lesado nos seus direitos, porque o processo, afinal, não deu entrada na Procuradoria e ele fica à espera da Justiça sobre um processo que não chegou aos tribunais. Quando se apresenta queixa à polícia, ela deve ser enviada à Procuradoria, porque é ali que se faz a triagem das mesmas. A polícia não pode fazer a triagem, ela deve limitar-se a receber as queixas do cidadão e enviá-las para os tribunais. O que acontece muitas vezes, é que o próprio cidadão não sabe, sequer, que pode fazer esta mesma queixa diretamente à Procuradoria da República. É um direito que lhe assista.

JÁ – E quanto aos tribunais?

MDG - Relativamente aos tribunais, e mais concretamente aos processos-crime, a capacidade de respostas das nossas secretarias é diminuta, se compararmos com o volume de processos que dão entrada. Isto prende-se, sobretudo, com o baixo nível de formação dos recursos humanos. De nada valem as formações paliativas, elas devem ser contínuas e consistentes. Tanto quanto sei, os funcionários das secretarias dos tribunais contam vários anos sem formação, o que dificulta, naturalmente, no exercício cabal das suas tarefas. Alguns até têm baixo nível académico e mal sabem escrever um texto. É esta a realidade dos nossos staffs para uma comarca, por exemplo, como a Praia, que lida com processos-crime - é algo muito difícil. Embora reconheça que existam funcionários a frequentar ensino universitário, mas só isso não chega.

QUANTIFICAR PROCESSOS NÃO RESOLVE O PROBLEMA DA JUSTIÇA

JÁ – Qual é o rácio de processos que cabe a cada juiz?

MDG - Não lhe sei dizer com certeza. Mas creio que cabe a cada juiz concluir anualmente 200 processos. É o que eu faço. Para a comarca da Praia penso que este é um número muito bom, se considerarmos que estamos a viver em tempos cujos crimes são muito mais complexos, cujas investigações levam muito mais tempo. Veja que crimes, como o tráfico de droga e outros, requerem tempo suficiente para recolha de dados que levem o juiz a agir em consciência e à luz da lei. Como sabe, a decisão do juiz deve ser justa em ordem a evitar a violação da liberdade de circulação do arguido, mas também os danos patrimoniais. Mas, por outro lado, considero que esse rácio é perfeitamente satisfatório, se considerarmos o ambiente em que labora a nossa Justiça. Embora, há uns anos, o Conselho Superior da Magistratura Judicial (CSMJ) tivesse estatuído que um juiz, em teoria, deveria concluir pelo menos 300 processos anuais. Digo, em teoria, porque eu posso julgar um processo com 300 apensos, e para mim são de fato 300 processos - porque no Ministério Público é esse o número de processos. Mas não é a quantificar processos que se resolve o problema da Justiça em Cabo Verde.
JÁ – Como é que se melhore a Justiça cabo-verdiana? Há alguma panaceia para o estado febril da nossa Justiça?

MDG - Não se trata de nenhuma panaceia. O que lhe digo é que a melhoria da nossa Justiça passa, necessariamente, pela criação das condições de trabalho dos funcionários judiciais. Desde logo: satisfazer as condições materiais dos magistrados. Você não pode ter magistrados a receber um salário humilhante como o nosso. Como já disse no início desta nossa conversa, os magistrados cabo-verdianos auferem salários de miséria. Um magistrado não pensa fazer umas férias no estrangeiro e em nenhum sítio. Eu, por exemplo, se pensar gozar férias em Cabo Verde, só posso ir para S. Vicente, onde tenho a minha mãe e os meus irmãos e não pago nada. Mas se quisesse ir para o Sal, por exemplo, não teria condições.

JÁ – Este salário de miséria de que fala, não incita à prática de corrupção, por parte dos magistrados?

MDG - Uma excelente pergunta. Aqui há uns anos, alguém das Nações Unidas que visitou Cabo Verde, no quadro dos projetos de cooperação, perguntava-me se este nível de salários não convidaria à prática de corrupção. Perguntou-me mesmo, se não havia corrupção na Magistratura. Eu respondi-lhe que confiava nos meus colegas e que, até essa altura, não conhecia nenhum caso de corrupção na Magistratura cabo-verdiana. É óbvio que existem incitamento à prática, porque há pessoas que pensam que somos todos iguais.

JÁ - E já alguma vez recebeu propostas de corrupção?

MDG - Propostas não, porque as pessoas não ousam. Mas, nas entrelinhas das conversas, percebe-se onde elas querem chegar. Quando é assim, pergunto sempre à pessoa se ela está a brincar. A partir daí, ela pára e não prossegue com a conversa.

*Carlos Sá Nogueira - Texto do Jornal Já
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